Ao piano

Meus dedos pressionam, displicentemente teclas aleatórias de um velho piano, criando então, um confuso conjunto de notas que não é nada próximo de qualquer melodia. Sentado de viés no banquinho almofadado, a destra corre por cima do teclado, vez ou outra um dedo cai sobre uma tecla e um breve som alça-se pelo ar, a canhota apanha o copo de uísque e o traz até minha boca. Tomo um gole, sentado em frente ao piano com tamanha falta de postura, que qualquer professora da arte não resistiria a sovar-me, o copo acaba apoiado em cima do grande instrumento. Ouço uma bela música, não cria de meus dedos que tamborilam a esmo, mas oriundo de um outro tempo, em que mãos habilidosas faziam dos sons, harmoniosa melodia. De olhos cerrados, deixo-me invadir por ela.

Pouco a pouco cria-se uma imagem, dolorosamente bela, de um momento que tornou-se pó. Tudo muda, exceto o piano que permanece o mesmo, embora pareça muito maior. As paredes brancas, de alvenaria, tornam-se madeira antiga, tal como o chão, que um instante atrás era coberto por felpudo tapete cor de fumaça. Já não me encontro sentado na banqueta ajustável, estou do outro lado do cômodo, em total silêncio, a fim de manter-me oculto. Onde estava eu, encontra-se agora outra pessoa, que trabalha o teclado com precisão cirúrgica, criando uma harmonia sonora de tal sorte deliciosa, que lembra cantiga cantada por voz materna. Mal ouso verter o ar que infla meus pulmões, temeroso que o mais mísero ruído delate minha presença, e esta por sua vez acaba por encerrar este concerto, do qual sou único e invisível admirador. Fico tentado a fechar os olhos, privando-me assim da visão e assim aguçar o meu ouvir, e assim sorver melhor aquelas notam que se abraçam, e de sua união nasce música; mas não o faço. Ajo assim, pois o que vejo é para mim tão precioso quanto o que ouço, e creio que será esta a última vez em que poderei usufruir de ambos, e aparentemente, não por muito tempo. A sinfonia aproxima-se do fim, como tudo, tem de acabar, e na medida em que as derradeiras notas soam, a imagem que se criou principia a desaparecer, com o último acorde, volto aonde estava.

Quando retorno a mim, noto espantado, que meus dedos dançam com presteza sobre o teclado. Agora as notas erguem tais quais aquelas em minha memória, diferem em pequeno grau, devido ao desafino do antigo piano. Ao terminar de tocar, sinto uma delicada mão pousar sobre meu ombro, uma lágrima atinge o teclado à minha frente, e se espalha num tanto de minúsculas gotinhas. Ouço uma voz que me toca mais do que qualquer orquestra jamais o fará:

-Fazia tempo que você não tocava assim, ela ia ficar feliz de ver.

A mão deixa de fazer pressão em mim, passos indicam que sua dona se afasta, um frio se manifesta onde sua palma fazia contato. Apanho o copo e tomo outro gole, com carinho seco, com um dedo, os resquícios da lágrima derramada, baixo a tampa que cobre o teclado, depois de forrá-lo com um bordado pano verde-escuro,e à largos passos vou-me para qualquer lugar.

Pietro Tyszka
Enviado por Pietro Tyszka em 20/04/2011
Código do texto: T2920227
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