Lembranças de Páscoa
 
 
           Os ovos de páscoa vinham do norte, mais precisamente da cidade de Erkelenz, na Alemanha. Não eram de chocolate, mas de verdade, de galinha, pintados com frutas, coelhos e flores. Vinham de longe, enviados a Roma pelos amigos “herr” e “frau” Heinen, juntamente com outros presentes, para anunciarem a Festa da Ressurreição. Em alguns deles, estava escrito: “Ressurrexit Dominus sicut dixit” (O Senhor ressuscitou como disse); em outros: “Frohe Ostern!” (Feliz Páscoa). Receava consumi-los, por serem mais símbolos do que ovos. Também sofria a minha cultura: Quem iria comer ovos de galinha cozidos há muitas semanas e provenientes de lugar tão distante, ainda mais com essa aura do sagrado? Os pacotes chegavam de trem, também trazendo algumas roupas de frio. A proximidade da Semana Santa coincidia com a primavera da bela Itália.
          Antes, muitos anos atrás, em Itabaiana, após o Domingo de Ramos, padre João Gomes da Costa determinava ao sacristão Bebé cobrir os santos de panos roxos ou pretos, a partir da quinta feira santa, que só seriam retirados para a Missa de Aleluia. E, para expressar mais tristeza, proibia que se tocassem sinos e campainhas. Arrodeando a Igreja, Erlie Amorim disputava com Raul Xavier quem conseguiria bater mais alto a pesada matraca. Balançavam com força puxadores de ferro na tábua, produzindo triste som de funeral. Alguns coroinhas se acanhavam de sair pela calçada com aquela estranha gerigonça, circulando a matriz, no meio do povo; outros, como Amadeu Alcoforado, não largavam a matraca, divertiam-se ao agitarem tabuinhas e alças de metal na prancheta, da qual repercutiam secos e repetidos estalos.
          Já em Pilar, nos idos de 1950, o que mais me resta vivo da Páscoa é o dia de abstinência, que antecedia o Sábado de Aleluia. Meu pai Inácio comprava bacalhau na venda de dona Lita, mãe de Domício. Eu, o irmão Ivan e nossa irmã Marilene dávamos aos pedintes pedaços do peixe, retirando-os do barril de madeira cinturado por aspas de aço, e colocando-os nos sacos de estopa dos homens e mulheres que assim pediam: “Ô de casa! Meu jejum, pelo amor de Deus!” Nesse dia, tido como de penitência, era quando melhor comiam. Jejuavam abundante bacalhoada, acompanhada com bredo e feijão de coco. Por ser tão saboroso, a minha casa adotava o mesmo “jejum”, e a vizinhança seguia essa prazerosa “mortificação”. Hoje, pobre comer bacalhau é coisa rara, milagre que não acontece nem na Semana Santa. 
       Minha memória insulou esses acontecimentos, também ilhas de minhas lembranças. Sei que, em cada época, pratica-se a liturgia mais adequada para revivermos o sofrimento, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. Mas, superestimo, como ritos de inesquecível riqueza, aqueles vividos por nossas almas de criança. Rituais que impressionaram nossas emoções e motivam, ainda hoje, as melhores lembranças de Páscoa.