O CASO DOS CANDELABROS
(A PUBLICAÇÃO DESTA PÁGINA DA IMORTAL ANA MEDINA ENCONTRA-SE DEVIDAMENTE AUTORIZADA E POR ESCRITO)
Ana Maria Fonseca Medina*
A colonial São Cristóvão era toda rebuliço, as modernas faixas de tecido anunciavam a chegada de um ilustre visitante, embora poluíssem visivelmente o cenário barroco.
Nos becos e nas ruelas ladeirosas, o vaivém das pessoas evidenciava que a placidez do lugar havia sido violada por fato novo. Em dias normais, a cidade espreguiça dolente, esperando o tilintar dos ferros do cavaco chinês, dos pregões anunciadores de beiju sarolho, malcasado, pé de moleque; mangas, mungunzá da talhada e outros feitiços da culinária sancristovense. As bandeirolas multicoloridas agitavam-se em frenética alegria.
O movimento de 1993, com vistas ao retorno do sistema monárquico, tomava conta do país, embora enfrentasse dura resistência da classe política e da própria imprensa. No entanto, na primeira Capital de Sergipe, ela revestiu-se de um caráter especial e de grande apreço. Repetindo o gesto avoengo, antigas famílias lançaram panos de ricos lavores de agulha nas sacadas do seu casario. A Banda de Música, regida pelo Maestro Fortunato, desfilava garbosa, deixando ecoar os sons de dobrados e marchas. Na Praça São Francisco, o Mestre Raimundo, com o seu reisado de raiz, vestia o largo de cor e poesia.
Todo esse aparato fazia parte da programação da visita de Dom Bertrand de Orléans e Bragança, em campanha para a restauração da monarquia no Brasil. Quixotescamente, tramava-se ali a devolução do Trono à imperial família. Simpatizantes, jornalistas, profissionais liberais, estudantes, religiosos, professores e a sociedade ostentavam no peito arfante de patriotismo o brasão do Império Brasileiro. Alguns, muito convictos, outros apenas por proselitismo ou ainda os que se sentiam fascinados pelos ornatos desse regime.
A comissão organizadora me solicitara a Sala do Trono para acontecer a recepção ao futuro monarca. Instalado o dispositivo de honra, o Mestre de Cerimônia convidou o Príncipe para tomar assento sob o dossel – o assento era uma cadeira de espaldar alto, de braços, forrada de cetim creme, simulacro de trono. O dossel de seda nas cores do Império ostentava o brasão original em madeira dourada. Dom Bertrand, conhecedor da simbologia do trono, diplomaticamente e de forma quase imperceptível, recusou o convite e se colocou ao lado do majestoso quadro de Horácio Hora. Tendo escapado de restaurar a monarquia ali e naquela hora, todavia, não escapou da longa fila dos cumprimentos. Alguns mais fanáticos faziam um leve reclinar de corpo, resgatando o costume do beija-mão.
Terminada a primeira parte da programação na Sala do Trono, Sua Alteza Imperial passou a visitar as dependências do Paço, acompanhado por um verdadeiro séquito. Durante o percurso pelas salas, um dos visitantes, dirigindo-se ao príncipe, lamentou a pobreza do acervo exposto e solenemente, citando Dom Luciano Duarte, disse que o sergipano não tinha o hábito do culto aos museus. Falou também da riqueza dos nossos engenhos de açúcar no período colonial. Num dado momento, sob o calor da emoção, um monarquista convicto anunciou diante do príncipe e de toda assembleia ali presente que estava disposto a fazer uma significativa doação ao Museu, no que foi aplaudido.
O doador era um jovem, envelhecido pela máscara fisionômica – isto é, uma farta cabeleira, barbichas longas. Vestia um terno preto, cuja camisa branca trazia nos punhos abotoaduras de ouro com o seu monograma. A toda hora conferia o tempo num relógio de algibeira, em ouro, preso a uma corrente. Provinha de antigas famílias da zona dos engenhos sergipanos. Alguns dos seus ancestrais haviam recebido de Dom Pedro II, a Ordem da Rosa. Dizia-se colecionador de candelabros e que havia chegada a hora de doar alguns exemplares ao Museu Histórico de Sergipe.
Após aquele dia, vivi momentos de muita expectativa, antevendo o Museu enriquecido com acervo nobre. Passaram-se os dias e nada de chegar a esperada doação. Rompi o silêncio, cobrando do doador o presente esperado, desculpou-se e prometeu que em breve a doação se confirmaria.
No dia aprazado chegou o esperado pacote. Era uma velha embalagem de papelão do sabonete Palmolive lacrada e escrita FRÁGIL. A expectativa era grande, cuidadosamente retirei as fitas adesivas, os cordões, tudo em presença da assistência familiar. Tão logo desenrolei a primeira peça senti-me como na História do Tesouro de Jaboatão ou nas Minas de Prata de Itabaiana.
Eram quatro candeeiros, dois deles de latas de turmalina e de azeite Soja, outros em flandre com três braços, cujos pavios estavam gastos pela fuligem. Artesanato do povo nordestino, adquirido nas feiras do Arauá, Boquim, Lagarto e Estância. Todos romperam num riso convulso, não pelo acervo que tem seu valor, mas pela decepção. Esperava candelabros de prata com mangas de opalina, cristal bacarat , louça de Limoges ou Sevres. Em que pese o desapontamento, encontrei como integrá-lo ao eclético museu, após uma boa contextualização, não perdendo a batalha.
Passado o tempo, fazendo a relitura dos fatos, entendi que naquele momento do anúncio, o doador estava tomado pela emoção da imperial visita e o nome candeeiro não soava bem. Substituiu a palavra candeeiro por candelabro. A questão foi, então, semântica.
*Da Academia Sergipana de Letras