O PROBLEMA DO SER HUMANO

O PROBLEMA DO SER HUMANO É SER HUMANO [reedição]

“Pode, acaso, o etíope mudar a sua pele ou o leopardo, as suas manchas? Então, podereis fazer o bem, estando acostumados a fazer o mal?”

(Jeremias 13: 23)

Este artigo foi publicado em 2005, por ocasião do debate nacional sobre a restrição à venda de armas de fogo no Brasil. A motivação para sua reedição foi o surgimento dos mais obtusos comentários e os mirabolantes projetos sobre a segurança pública no país após a tragédia na Escola Tarso da Silveira, no Rio de Janeiro.

Embora pareça absurdo, os especialistas em segurança sempre alertam: em caso de perigo iminente ou tragédias, a primeira iniciativa deve ser manter a calma. O alvoroço e a precipitação impressionam, sensibilizam e comovem, mas raramente resolvem. É comum, em circunstâncias tais, as pessoas terem como primeira iniciativa a especulação sobre um possível bode expiatório. Como se, a essas alturas, encontrar alguém para culpar explicasse tudo ou trouxesse de volta alguma das vidas perdidas.

Num misto de emocionalismo, desespero e oportunismo, surgem de parte dos especialistas e governantes comentários como: “por que a escola não revistou o ex-aluno”? “Por que não confirmaram seu nome na lista de convidados?” Enquanto isso, alguns congressistas propõem, entre outros projetos: a implantação de detectores de metais nas escolas, revistas aos alunos e até um novo plebiscito com a intenção de proibir o comércio de arma de fogo no país.

Estes sabe-tudo se esquecem, porém, que as portas com detectores, por exemplo, são programadas para identificar artefatos de metais, não problemas mentais. Esquecem-se, também, que o uso de armas de fogo é apenas uma das muitas formas de se cometer assassinato em massa. O que mais existe na literatura policial universal são relatos de casos análogos em que nenhuma arma consta na cena e, nem por isso, a tragédia foi menor.

Quanto à proposta de novo plebiscito para se proibir a venda de armas de fogo no país, por mais que usem mil e uns argumentos, a razão principal é uma só: os governantes querem transferir para o povo problemas os quais eles, quando candidatos, diziam saber como e estarem dispostos a resolver. Ora, se as grandes tragédias envolvendo armas de fogo resultam da ilegalidade, por quê alguns parlamentares centram seu foco exatamente no flanco oposto, a legalidade? E se o povo já os elegeu para o representar, por quê convocá-lo a opinar novamente sobre o mesmo assunto? E mais: por que não há esse mesmo espírito ultrademocrático quando é para dobrar os salários dos parlamentares ou para reajustar o mínimo?

A facilidade do acesso a armas de fogo, sem dúvida, contribuiu para a tragédia. Mas ainda que todas as armas do mundo sejam extintas, continuaremos a assistir espetáculos do horror como este.

Se não tivesse sido com armas de fogo, poderia ter sido com facas, canivetes, estiletes. Se não com facas ou estiletes, poderia ter sido com gasolina e fósforo, paus, barras de ferro; se não fosse com isso, poderia ser com veneno, produtos, químicos, etc.

Em casos como este, o perigo não está no que a pessoa carrega nas mãos ou na mochila, mas no que ela carrega no cérebro. Outros entendem que armar os professores pode ser uma boa solução. Ora, os policiais vivem armados o tempo inteiro e recebem treinamento constante para viverem sob pressão; mesmo assim, não são poucos os casos de profissionais dessa categoria flagrados cometendo ações semelhantes a do atirador de Realengo. Quando se propõe isso, parece até que existe uma vacina que imuniza professor contra doenças psíquicas.

Segundo o relato bíblico, o primeiro assassinato da história da humanidade foi um fratricídio. O texto é relativamente sucinto; mas, pelo contexto, é possível inferir que o crime fora premeditadamente cometido de forma bárbara, cruel, sem chance de defesa e por motivo torpe. E mais: o homicida não tinha antecedentes criminais, vivia no ambiente mais pacífico que já houve na terra, não era viciado em jogos eletrônicos, não sabia manusear armas de fogo – aliás, elas só viriam a existir milhares de anos depois –, não tinha contato com extremistas religiosos, não fora influenciado por filmes violentos e nem constava em seu currículo que havia sido “vítima de bullyng” na infância – o que, de acordo com a “nova lei dos tecnocratas do comportamento humano e a grande mídia”, daqui por diante, explica todo e qualquer desvio de conduta.

Tentar prevê as ações de uma mente psicopata seria como tentar explicar, por exemplo, porque que o invisível é invisível ou porque é sem sabor o insípido.

Longe de querer subestimar os renomados estudiosos do assunto e as incontáveis contribuições científicas sérias a respeito, a explicação mais plausível para a tal questão seria, talvez, aceitar que o principal problema do ser humano não é o ambiente onde ele vive, o tronco genealógico de onde descende ou os tipos de produtos que ele tem à disposição para manuseio e consumo. O maior problema do ser humano [e, também, sua maior virtude] é o que ele é: humano. Afinal, qual outro ser no planeta Terra consegue tanto?

Não sou maniqueísta; mas, também, não sou ingênuo o suficiente para acreditar que, de uma hora pra outra, como num truque onde o mágico move os dedos e o coelho sai da cartola, vamos encontrar a solução para um problema que ninguém, jamais, conseguiu, sequer, identificar suas verdadeiras origens.

Pela minha aparente frieza ao tecer tais comentários, talvez seja incluído por muitos entre aqueles que podem ser considerados psicóticos ou sádicos. Como milhões de pessoas no mundo inteiro, eu repilo não apenas esta, mas toda e qualquer ação que não necessariamente resulta em morte, mas que, de alguma forma e em algum nível, atenta contra a dignidade e a integridade do ser humano. Porém, como já afirmei, não acredito nessas soluções mágicas apresentadas a toque de caixa, em meio a arroubos de comoção nacional e sem uma séria fundamentação lógica e científica que lhes dê o mínimo de respaldo para que possa alcançar o status de confiável.

Entendo ainda que o fato de sermos o que somos: humanos – e, como sugere o texto sacro, não pudermos fugir ao carma de nossa origem – não deve ser aceito como uma sentença para cruzarmos os braços e, como diria o maluco beleza, nos sentarmos “no trono de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar”.

É claro que temos que nos mover. Apenas entendo que tal movimento deve se dar, como desejava Arquimedes de Siracusa, a partir de um ponto de apoio; não a partir de especulações vazias ou propostas fantasiosas, baseadas no clamor popular ou no insaciável desejo de libertação do ser humano de sua eterna angústia por ser aquilo que ele é: humano.