Crônica de encantamento - A mulher que vira porca
Antigamente não existia cinema, nem televisão, mas existia os contadores de histórias, pessoas de mentes brilhantes e voz melodiosa que gostavam de fazer medo as crianças e contavam histórias de alma, de malassombro, de guerreiros e contos de fada.
Existia as mulheres devotas das coisas do além, que rezavam as orações da igreja de trás para frente na ânsia de descobrir qual bicho seria o da vez, o da sorte e acabavam, por encantamento, virando-se em porcas. Quanta história não ouviu assim.
Antigamente era assim, as pessoas usavam da oralidade para realizar coisas sem muita explicação e explicavam através dos encantamentos, das transformações mágicas. Existia a velha Genesora, rezadeira, lavadeira de roupa alheia que gostava de contar. Era engilhada como pano lavado e recolhido depois de dia de sol. Faltava-lhe os dentes e de moganga em moganga quase que não se ouvia o que dizia na verdade.
O que se sabe dela é que certa noite de lua cheia, noite de desassossego, todos a postos embaixo do pé de algaroba que sempre contava suas histórias, todos a espera quando de repente, sem que ninguém esperasse, uma coisa estranha, um som estranho por detrás da cerca que dividia as casas. Quando o clarão é notado e um barulho de rosnado de porco é ouvido, não ficou ninguém para contar a história. O chão faltou para aqueles que ali se encontravam para ouvir mais um causo contado por ela.
Foi uma noite que ficou na história. Maria da lavagem havia comprado uma chinela havaiana naquela tarde na venda de seu Chico beiçola, na carreira fincou o pé numa terra molhada e quando puxou o pé, o chinelo ficou. Foi uma noite inteira de choro. Dona Nativa, a velha gorducha cachimbeira tinha a fama de não usar calçola por causa da largura da pança, só usa um pano entre as pernas e na hora do aperreio perdeu o forro e chegou em casa só sentindo o vento frio e o calor a frevilhar-lhe as estranhas.
O caso mais intrigante foi do Guel boleiro. há dias estava de moletas. Inventara a mulher que na entrega dos bolos, uma carroça de boi desgovernada havia lhe pego de frente e foi só a continha para quebrar a bicicleta, derrubar os bolos e ficar com os joelhos machucados quando a história real foi que uma de suas amantes, ao descobrir que era casado, contratou uns cabras da pesada para assenta-lhe uns quatro ou cinco moxicões. Naquela noite foi o primeiro a fincar o pé na carreira, os pés batiam no traseiro e quando chegou em casa, a mulher cismada e esbaforida, pegou a colher de pau de mexer os bolos e quebrou-lhe as costelas colocando-o para dormir fora de casa.
E a gritaria de meninos e meninas pelos quatro cantos da rua escura a gritar o nome dos pais. Foi uma barulheira tamanha que foi preciso o vigário bater os sinos da capela em sinal de recolhimento. Do alto da janela do sobrado, vestido de camisola e touca de dormir, o velho senhor a tomar uma taça de vinho santo e não entendendo tamanho desativo.
Não tardou para que uma beata fogosa de nome Edite basse a porta da sacristia a pedir auxílio e segurança ao velho senhor que as pressas desce as escadarias e sem perceber as vestes abre as portas e de súbito a fogosa beata se atira aos braços do padre.
Entre um arroxo de pescoço e uma roçada de vergonhas, uma voz lá longe a gritar que era só a porca mimosa, da velha generosa que havia dado a luz a dez bacurins naquela noite.
Aos poucos portas e janelas da pacata cidade iam se abrindo e sorrindo para a noite enquanto as bocas mais venenosas já espalhavam ser a velha Generosa que havia feito uma oração ou contrário para saber qual o bicho do outro dia e num erro por ser noite de lua cheia, ter sido transformada em porca pelas forças ocultas, do mal, do coisa ruim, do bicho de chifre.
Os mais astuciosos já sentiam o cheiro do enxofre pelos ares da cidade e outras carolas já haviam entupido os oratórios de velas de todas as cores e orando para que aquela noite já passasse. Os terços nas mãos e os joelhos no chão enquanto os corajosos homens se punham por trás das janelas armados de espingarda.
Até o velho padre tomar ciência do ocorrido, a fogosa beata o abraçava, roçava-lhe o corpo e para completar a cena o sacristão chega de súbito para espalhar o que havia visto e as sobras e os aumentos dos dados.
Enquanto isso, lá em sua casa, a velha Generosa, depois de fazer todo o parto, ter lavado as mãos e ir ao terreiro da casa, achou estranho não ter ninguém. Olhou para o espaço vazio e pensou com seus botões: _ Logo hoje que ia contar a história da mulher que virava porca por uma oração mal feita ninguém aparece? Assim vou entrar, fecha a porta e dormir. Amanhã terei muito trabalho para fazer...
O estranho é que de longe, bem de longe dava para ver os joelhos ralados e na boca um movimento estranho. Quem se arrisca bater a porta, acordá-la para saber a verdade, quem se arrisca, quem?