PELA VIDA...A BRINCAR DE BONECA
Aquela manhã de sol talvez fosse sim, mais um desses domingos como o de hoje, bonito e bastante ensolarado, não me lembro ao certo, mas decerto que era dia um tanto diferente ao deste, aonde depois da assídua missa da manhã, pegávamos o ônibus tranquilamente estacionado num calmo terminal rodoviário, sem confusão alguma, sempre aquele mesmo coletivo que nos levaria até a Móoca, um bairro de italianos aonde residia a minha família inteira.
O motorista já nos conhecia e sempre comentava algo sobre a minha bagagem. Eu apenas lhe sorria.
Vínhamos do ABC e lá no terminal eu sempre subia as escadas do coletivo com certa dificuldade porque carregava uma "tralha" de coisas que não eu não abandonaria nunca.
"Não sei por que você não deixa tudo isso em casa" me dizia a minha mãe...inconformada com aquele meu "sacrifício".
Assim que o ônibus ligava o motor eu checava toda aquela minha extensa bagagem, aliviada por ali ver tudo bem arrumadinho, parecia a sensação dum dever cumprido da alma, intransferível, algo só meu, e então ,partíamos em viagem de família, eu sempre a imaginar a farta mesa do almoço, algo típico da colonia italiana, lá na casa da minha madrinha Francisca que sempre preparava bolinhos de arroz com espinafre, aqueles pingados de colher, macarronada de talharine caseiro feito por ela, a bolonhesa, e de sobremesa uma croscata de amêndoas e nozes.
"Filhinho hoje comeremos direitinho, viu, tem que se alimentar para crescer forte!" eu verbalizava em pensamento àquele meu pequeno bebê que eu aconchegava nos braços e que não largava por nada daquele mundo, aliás, com extremo cuidado eu o carregava com suas "malas e cuias" para todos os lugares, há mais de um ano, com todas as suas várias trocas de roupinhas, mamadeiras e cobertores, além dos produtos de higiene e das fraldas.
Ele, com feições de menino, era uma bonequinha sem nome, daquelas típicas de menina pobre, toda de plástico rústico amarelo-embora me lembro que havia a tal boneca nas cores azul e rosa- mas que na minha epoca era uma coqueluche mesmo entre as crianças ricas.
Não havia menina da minha geração que não a tivesse, o tal do bebezinho que vinha com uma mamadeira e que tão logo ingerisse líquidos já fazia, por via direta, um comprido xixi.
Aquele domingo transcorreu normalmente, alimentei a boneca, fiz as trocas das fraldas, dei-lhe um banho, cantei para que dormisse no caminho de volta...pelo mesmo coletivo.
Lá para tantas penso que cantei tanto que eu e o "bebê" adormecemos dentro do ônibus e apenas me lembro que acordei com um chacoalhão do meu pai. "Acorda filha, chegamos!"
Ao saltar do coletivo, meio sonolenta, deixei para trás o bebezinho e todas as suas "matulas". Ninguém de nós percebeu a tempo aquele meu esquecimento.
Lembro apenas do meu desespero. Era como se tivesse perdido o meu sentido.
Chorei noites e noites mesmo depois da via sacra do meu pai para tentar recuperar a boneca pelas garagens dos ônibus.
Conta minha mãe que na primeira noite ardi em febre.
Nunca mais encontrei meu bebezinho e ali eu entenderia, tão precocemente, qual é o vácuo da sensação dum ninho vazio.