Tempo de areia

Quando o sol começou a surgir o cheiro de padaria misturou-se ao aroma da rua lavada pela chuva. Pelo soalho das casas havia uma leve película de umidade. Na memória restava ainda o eco da alegria. Um eco que recusava despertar tendo a felicidade em trajes de aparente imortalidade. Sentia ainda a juventude nas veias. Ao passar a noite na rua revivia cada segundo... Se alguém pudesse responder onde estão todos agora? Viverão ainda? Surgirão com seus trajes de época revelados em contato com a luz?

Passou a noite nos poucos lugares que encontrou sem encontrar viva alma. Havia alugado um pequeno quarto para passar alguns dias quando percebeu havia encanecido no mesmo lugar. Ainda imaginava dobrar a primeira esquina para subitamente reencontrar todos: João, Luiz, Estanagildo, Martinha, Neltair.

A rua principal estava perdendo terreno para outros logradouros com maior fluxo de comércio. Sua retilínea história dava sinais de desgaste mesmo sendo a mais velha rua de prestígio. Toda ela denunciava perenidade com seu andar calmo, contudo submergia cada vez mais no espaço amanhecendo. Nessa arcana esquina consagrada havia apenas um banco vazio, quebrado. Todos estavam acordando e pareciam ainda adormecidos após o exaustivo trabalho heróico da simplicidade.

Reconheceu o velho dono do bar sentado em frente ao comércio em demolição. Observava cada tijolo caindo como lembrança apurando realidade... Ali estava desmoronando o cenário que ele havia vivido a maior parte dos seus longos anos. Uma existência naquele lugar e agora estava ali, perplexo, mudo, observando restos. O único bar da rua principal havia terminado. Sentia vontade de deter essa destruição, parar o tempo, interferir com violência. Tudo inútil. Era preciso ter alertado para que não passasse, dada ordem imperial para deter a impermanência em companhia de outros. Feito pacto de não ceder ao fim. Sentiu o frio traiçoeiro da lentidão como o vento na folha do butiá doce.

Permitiu que o silêncio cimentasse a cena. Por dentro era como se tivesse acertado na loteria sem que o bilhete surgisse na hora do resgate do prêmio. Viveria toda a sua vida com a sensação de que era possível compartilhar a riqueza ausente, sem dizer nada, apenas contando estrelas para distrair a pobreza. Dominado pela escravidão detida na liberdade. Sentia o céu nublado da incerteza sobre o caminho de areia. Tinha que ir embora, mas para onde? Partir a pé era loucura. Estava velho com as mãos de dedos magros e longos apontando um rumo desconhecido. Apenas uma piada em transe cairia bem para pular certos trechos da angústia.

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Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 16/04/2011
Reeditado em 16/04/2011
Código do texto: T2912217
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