Tributo a Descartes ou A Sobriedade de um Louco
Tributo a Descartes
Provavelmente, a esta hora estou em casa, não tenho certeza. O telefone estridente soa na sala ao lado, não como um mero telefone, mas, como uma sirene que alerta sobre um possível ataque aéreo. Ataque aéreo? Logo hoje? Não, não é possível, não estou louco nem bêbado. Minha sobriedade, insistente e opressiva me convence que realmente é o telefone. Talvez minha audição, que nunca fora muito boa, tenha resolvido regenerar-se, e, agora na velhice faz-me ouvir os sons como realmente são, diferentes daquilo que ouvi até agora. Talvez esse seja o verdadeiro som de um telefone: Um estridente, assustador e dissonante trinado, enquanto a tal sirene de guerra, quem sabe, no fundo emite um calmo, suave e harmônico trinar. Não, não estou louco, percebo, apenas regenerado da deficiência auditiva. Resolvo atender o telefone:
-Alô?
-Alô, é o Perílo? Perguntam de lá,
-Não, não é o Perílo. Retruco meio abusado, e que raio de Perilo é esse? Perílo? E isso é nome de gente?
-Quem está falando, por favor? Indagou meu interlocutor, agora com voz de doutor falando com um ignorante ou de um superior admoestando seu lacaio.
-Não sei, não faço a menor idéia, e o pior é que não há ninguém em casa a esta hora que possa dizer-me quem sou. Aliás, que horas são? Indago apreensivo.
-Amigo, são duas horas da madrugada. Responde o anônimo interlocutor.
-Duas horas? E isso é hora de ligar pra casa dos outros? Esbravejo.
-Calma senhor, não quero aborrecê-lo, queira desculpar-me, se ligo a esta hora é porque o assunto é sério mas, vejo que o senhor não é o Perílo não é? E, por acaso estava o senhor dormindo? Perguntou-me, agora com voz mais branda.
-Não, não estava, mas, já que ligou, o senhor poderia me ajudar? Poderia dizer quem sou? Poderia dizer alguma coisa sobre mim? Pergunto quase em súplica.
-Bem, amigo, prosseguiu o tele-conversante demonstrando certa piedade, - Dizer quem é você não posso, pois nem o conheço. Peço desculpas pelo inconveniente que causei e, se aceita um conselho sincero devo dizer: Por que o amigo não procura ajuda de um profissional? Não estou sugerindo nada, mas... um psiquiatra poderia ser-lhe de grande ajuda num momento desses. Parece que o senhor não está muito bem da cabeça, não o estou chamando de louco, mas...
-Basta. Interrompi, - Basta, o senhor está se excedendo, nem me conhece, fica me chamando de louco? O senhor é louco? Basta, não me aborreça mais, por favor.
Bati o telefone transtornado com a indignidade humana, que faz com que um sujeito desconhecido me chame de louco, em plena madrugada, somente porque não estou muito a par de alguns detalhes sobre minha singularíssima pessoa. E isso é loucura? Esquecer-se do próprio nome é loucura?
Bem, embora transtornado pelo acontecido, miro-me no espelho e percebo-me de pijama. -Certamente estou pronto para dormir, deduzo com obviedade, e resolvo que é exatamente isso que farei, já que estou de pijama, é noite alta, estou no meu quarto ao lado de uma bela e confortável cama e aquele pequeno incidente, aquele irritante telefonema, não será obstáculo ao meu sono.
Mas, - Peraí, estou mesmo no meu quarto? E se um Gênio mau estiver usando seus poderes para fazer-me crer que estou de pijama em meu quarto, na minha casa, pronto para dormir e, na realidade estou num hospício ou noutro lugar qualquer, bem longe da minha moradia? E se não sou eu quem penso ser, se nem disso tenho certeza? E se não estou aqui? E se não estou ali? E se...
E se eu não existir? Posso não existir? Posso?
Só consegui sair desse estado horroroso de dúvida em que me achava, dessa tenebrosa situação que me assolou durante horas, verdadeiro transe que me encarcerava, quando de manhãzinha veio, de súbito à lembrança, a curta sentença do filósofo que diz: "Penso, logo existo”.
Então pensei um pensamento: O pensar, resultado de tremendas explosões nucleares neurônicas, pura energia, portanto, é a sede, fonte e princípio gerador da existência material (fenomênica), existência essa formada a partir da divina energia manipulada no pensar. Como referiu outro filósofo: O mundo fenomênico é mera idealização da força motriz primordial, dela e de seus correspondentes ideais. Portanto, “Cogito, ergo sum.”