Morri no Brás
Você mal se dá conta e/ou consegue acreditar quando acontece. E depois simplesmente não entende.
Não dei a sorte de conseguir entrar no que tem ar-condicionado e apesar do suor brotando de forma profusa eu não me senti incomodado como de costume de tão compenetrado que estava na quinta ou sexta releitura do Factótum.
Ela entrou na estação seguinte, Penha, com mais uma manada e ficou do meu lado esquerdo.
Na minha frente, bem na altura do livro, prostrou-se um decote impossível de não ser notado. O dono da dona do decote surgiu e abraçou-a de lado e tascou-lhe uma mordida felina no pescoço. Ambos com o mesmo cheiro de sabonete, de cabelos molhados.
No Belém eu desisti de ler e me concentrei no bruxuleio das lâmpadas fluorescentes.
A coisa, como sempre ingrata, parou no túnel entre Belém e Bresser e eu olhei pro meu lado esquerdo: a típica cor de esmalte que me atrai; o típico corte de cabelo (curto) totalmente sincronizado de forma harmônica com um típico nariz comprido que – aposto cinco contra um – teve lá suas primeiras filigranadas em terras italianas; as maçãs do rosto com levíssimos toques de blush.
Foi quando o trem entrou vagarosamente no Brás que aconteceu: ela colocou uma mecha atrás da orelha direita e no mesmo movimento olhou diretamente nos meus olhos, sorriu timidamente e abaixou a cabeça.
No segundo seguinte a porta de embarque abriu-se e o lugar foi tomado por gemidos de dor, risadas, imprecações, fedores e calor. No segundo subseqüente eu já estava três passos à frente – todo o esforço empurrando o teto e tentando plantar as pernas no chão pra não sair do lugar em vão.
A menina que sorriu pra mim foi jogada mais pra esquerda. Eu conseguia ver apenas seu braço segurando no ferro. O restante era obstruído pelo braço de 50cm de um negão.
Logo chegou na Sé e o típico enxame de pessoas atabalhoadas e sem rosto tomou a plataforma. Ainda olhei uma ou duas vezes pra trás e não a vi.
Subi as escadas rolantes passando a mão no rosto. Passava as mãos no rosto e conferia se havia alguma sujeira nas palmas. Nada.
E um céu azul quase Californiano. E todos os perdedores e bêbados e derrotados de sempre sentados nos canteiros. E a Catedral impecável.
E eu atrasado vinte minutos e me perguntando o porquê do sorriso...
14/04/2011 – 09h33m