7 de Setembro - Dia da Dependência
Mais uma manhã comum de segunda-feira na vida daqueles passageiros do ônibus da linha Vila Nova Cachoeirinha. Dia que começara ensolarado e assim prosseguira com o sol já a pino. Quando entrou aquela mulher...
Trazia no semblante uma expressão de dor causada pela força que fazia ao carregar um rapaz com feições infantis e abobadas, mas de um corpanzil que fazia a pobre parecer uma formiguinha suportando uma abelha. Roupas surradas, chinelos nos pés empoeirados, cabelos grisalhos, rosto franzido, cara de poucos amigos. Rudemente, a mulher pôs-se a bravejar e a lamentar-se da vida. O ônibus permanecia parado no ponto final, os passageiros tomavam seus assentos e lançavam olhares de curiosidade e repreensão. Ajeitou o rapaz no banco reservado a idosos, gestantes e portadores de necessidades especiais. Logo, revelou tratar-se de seu filho que possuía deficiência mental e motora. Irritada com os olhares nada complacentes, tornou-se agressiva e passou a desafiar a quem quisesse continuar a observar seu infortúnio.
_ Qui é qui tá olhanu? Nunca viu? Eu já falu logu, purque si tivé discriminanu... dô logu umas bifa! Cumigo é assim, discriminô....
O ônibus continuava parado. Os passageiros tentavam desviar o olhar da mulher que "caçava" olhares indiscretos de menosprezo. Sem que ela percebesse, fiquei a observar e a meditar sobre tudo o que estava presenciando. Por que tanta miséria e injustiça social? O que teria acontecido na vida dessa mulher para que se encontrasse nessa situação? - pensei comigo mesma. Num sobressalto, decidiu comprar um churrasquinho grego antes que o ônibus saísse. Voltou oferecendo ao cobrador e ao motorista um pedaço daquele sanduíche que comia tão deliciosamente. O ônibus começou a locomover-se. A mulher comia, falava alto, babava, derrubava a vinagrete pelo assoalho. O molho do sanduíche escorria-lhe pela mão. A essa altura, as pessoas sentadas próximas a ela se encolhiam, se espremiam, tal era o temor que um daqueles perdigotos as atingissem em cheio. Neste momento, peguei-me em flagrante observando-a nauseada. Sua figura, acompanhada de seus maus modos estavam a incomodar-me. Me senti culpada e hipócrita naquele instante. Fiquei envergonhada. O que a diferenciava de mim? Éramos, de fato, tão diferentes assim? Carne e ossos, sangue correndo nas veias, necessidades fisiológicas...Mas e as oportunidades que tive e as que ela teve...Que diferença! Ela continuava falando, agora conversava com o motorista. Falava de sua infância miserável, de suas dificuldades para manter seu filho doente, de como eram caros os remédios e do descaso da saúde pública. Disse que havia pedido ajuda a uma vereadora que recusou-se a ajudá-la porque ainda não era época de eleições. Atenta a toda aquela prosa, dei-me conta de como é quase impossível para muitos romper o ciclo da pobreza que herdaram de seus pais, avós, bisavós...Era como um estigma! Uma marca intransferível tatuada no corpo e na alma, destruindo a psique, rebaixando a auto-estima, inferiorizando, paralisando, neutralizando... Em todo o trajeto as pessoas se mantiveram caladas, ouvindo o que a rude e sofrida mulher dizia. De repente, fui impactada pela força das palavras daquele ser tão indefeso e subjugado. Palavras difíceis de esquecer:
_ Eu nasci no dia 7 de Setembro, dia da Independência, mas eu nasci com essa dependência: a pobreza...