Não foram as letras que me inspiraram as palavras

Meus primeiros anos escolares estão muito vivos em minha memória. Mais até do que os anos que vieram décadas depois. Lembro-me perfeitamente de quando estudava no Primeiro Ano C, que deveria ser o que é o Jardim da Infância III atualmente. Naquela época éramos alfabetizados nos três primeiros anos A, B e C.

Num daqueles dias em que me encontrava no Primeiro Ano C, a professora Teresa, que era a moça mais bonita da cidade, depois de nos ensinar o PA, PE, PI, PO, PU, nos deu desenhos para pintar. Sobre minha carteira, que cabiam dois alunos sentados (e eu estava só), colocou um patinho amarelo feito de papelão que eu devia circular para adquirir forma, depois pintar.

Eu adorei o pato, mas sabia que mais tarde viria a leitura e eu, não sei por que, temia não acertar. Morria de medo. Lembro que circulava o pato pensando em como eram as letras que formavam a palavra ‘pato’. Mas e se a professora não pedisse para eu ler a palavra relacionada ao meu desenho? Que sofrimento, meu Deus!

Aprendi a ler por medo de não saber ler. Li tanto, que ao mudar de cidade, fui matriculada em duas séries seguintes naquele ano porque lia demais. Eu lia tudo. Lia até a expressão nos rostos das pessoas. E isso naquele tempo não se usava. Não se fazia esse tipo de leitura. Quando não tinha nada para eu ler, escrevia, depois lia meus escritos. E muito cedo passei a ler livros e revistas de meus pais. Fotonovelas, livrinhos de cordel, bolsilivros (livros de bolso que contavam as estórias do faroeste).

Nos meus primeiros anos escolares eu desenvolvi habilidades, que só mais tarde compreendi. E meu pai teve muito a ver com isso. Ele contava estórias, que nega ainda, mas as inventava. Viajava muito. Era um sonhador e romântico incorrigível. Passava para os filhos a ideia de que o mundo era mágico e que tudo que havia no mundo tinha um por que, só tínhamos que descobrir qual. Dizia que cada um de nós havia nascido de uma maneira, e para contar a história de cada um, fazia esforço para puxar pela memória, detalhes, frases, sentimentos que eram retratados como verdade. Eu, por exemplo, havia nascido atrás de um cupim, assim como nascem as gramas, ao acaso. Nenhum de nós veio ao mundo através de uma mulher. Meu irmão mais novo nascera na toca do tatu, por isso é o mais moreno de todos nós. Na toca não entra luz nem do sol, nem do luar.

Minha mãe era calada. Mas sorria com os olhos. Ajudava-me com as tarefas e quando não sabia, pagava professor particular. Eu tive dois. Um professor de matemática que só enrolava. E uma professora de leitura e de cópia. Não fazíamos redação.

Com a imaginação de meu pai e os cuidados de minha mãe eu me ajeitava na escola. Não sei ao certo por que, mas quando dei por mim estava declamando poesias, que errava sempre, na hora do Hino nacional. Naquele tempo a gente ficava em filas, posição de sentido para cantar o Hino Nacional. E gostávamos disso.

Engraçado como eu me arriscava. Depois de esquecer a poesia, de pagar mico, passava algumas semanas e lá estava eu de novo na frente da escola inteira com os braços rentes ao corpo e metade de um poema na cabeça. Quando não dava mais conta, dizia: esqueci. E voltava para a fila com meios aplausos.

Fui alfabetizada com a cartilha Caminho Suave. Depois vinha o segundo livro chamado intermediário. Nessa fase já nos sentíamos ‘os veteranos’ e podíamos brincar de rodas com o pessoal do terceiro e quarto anos. Naquele tempo se brincava muito nessa idade, com bonecas, inclusive.

Todas as vezes que vejo uma criança com dificuldades para ler, me sinto novamente naquela sala, naquela carteira enorme e eu lá sozinha. Nunca tentei desenhar um pato depois disso, como também nunca aprendi a pintar um ovo. Acho que resolvi o problema de leitura e escrita, mas adquiri uma série de outros problemas. Desenhar e pintar são dois dos muitos.

Não acho que foram as letras que me inspiraram as palavras. Acho que foram os sonhos que me obrigaram a encontrá-las. O colorido das estórias do meu pai se fixou para sempre em minha alma. Ainda ouço o apito do Navio Azul, que levava uma moça triste de volta para sua terra, depois do namorado ter caído do cavalo tordilho, ficando vários meses machucado, chegando tarde ao porto onde seu amor o esperava.

Penso sempre em mudar o final desta estória. Uma forma de exorcizar a dor que meu pai me colocou no peito quando falou pela primeira vez de despedidas. Quem sabe a moça para de sofrer e o namorado não se sinta tão culpado.

É por essa e por outras que amo Português (e não matemática). As coisas só não se ajeitam se a gente não conhece as palavras.

Irami Gonçalves Fernandes Martins