Símbolo de K.
Ele já estava ali cerca de duas horas. “Como a hora passa quando estamos com a atenção e preocupação voltadas para a tela radar”. Por mais que a mente o levava a diversos lugares, havia uma parte dentro da complexidade cerebral de K. que o mantinha ligado àquela situação em particular. K. é controlador de tráfego aéreo. Por mais que o leitor não entenda de tráfego aéreo, mas os diversos comportamentos desse profissional é bem compreensível a todas as pessoas. Mesmo sendo aqui o mais importante o tráfego aéreo, tentarei conduzir o precioso leitor, por meio das relações humanas, a um mundo desconhecido da maioria da sociedade.
K. é controlador de tráfego aéreo. Ele é responsável pela segurança do vôo de centenas de aeronaves. E em cada uma dessa centena há milhares de vidas. Vidas. Se quiséssemos definir o que é controle de tráfego aéreo, acredito que a melhor definição seria: o cuidar da vida. Como muitas outras profissões que cuidam da vida. Mas o controlador de tráfego aéreo cuida da vida constantemente. Não só quando ela está em perigo, mas até mesmo durante um vôo normal sem perigos. Qual Deus, está sempre atento ao céu. É como se os olhos de Deus se multiplicassem sobre a Terra. E com o auxílio do radar K. está sempre atento ao céu. Cada ponto que cruza a tela corresponde muitas vidas. K. tem que cuidar da vida. Eis a obrigação que impera em sua mente. Obrigação que se embaralha com as diversas contas a pagar, com os estudos universitários, com as outras obrigações que são impostas sobre ele, com a mulher que tem que amar, com os filhos que tem que criar, com os pensamentos naturais que perturbam diariamente a mente humana.
K. acima de tudo e de todos é controlador de tráfego aéreo. Ele gosta de exibir sua habilitação. “Sou habilitado a trabalhar radar” E depois cai em gargalhada. Sente-se grande, diferente, especial. Especial. Certa vez um piloto francês agradeceu-lhe por alerta-lo sobre a sua rota. K. pensou que aquele agradecimento fosse algo indevido, pois estava ali justamente para fazer aquilo. Mas um amigo disse-lhe: “o cuidado pela vida jamais poderá ser pago, mas elogios e agradecimentos são símbolos” K. ria de parábolas: “Símbolos?” “Sim, símbolos. O símbolo de que não sou indiferente ao seu cuidado. Já que não posso lhe pagar a altura, receba esta pequena jóia que é parte de mim mesmo” K. era altamente capitalista e preferia símbolos mais concretos, mas entendera perfeitamente aquele símbolo. E percebeu que o homem não só vive do pão…
K. já estava duas horas em frente a tela do radar cuidando das vidas que voavam no espaço que era de sua responsabilidade. Qual um anjo atento separava aeronaves que insistiam em se encontrar no mesmo ponto na mesma hora. A cada instante lhe saltava a mente uma conta de luz para pagar e um cruzamento sobre uma cidade qualquer o trazia de volta a realidade. Aquela parte cerebral do controlador estava sempre atenta aos aviões. “K, você sabia que a Joana está grávida?” “A Joana do Hamilton?” “Sim, já é o terceiro filho” “…desça agora para o nível…” “E como está o Hamilton?” “Está desesperado” “…suba para o nível…” “Ele pediu até para sair da escala” “Sério?” “Sério” “…curva a direita, proa…”
K. finalmente foi substituído por um outro controlador. O tráfego aéreo dura vinte e quatro horas. K. colaborou algumas horas de sua existência para a manutenção do sistema. Interessante que as imagens da tela radar costumam assaltar K. de vez em quando. As vezes ela aparece em seus sonhos. As vezes K. se sente tão sozinho que chora olhando as estrelas. Certa vez ele chorava olhando as estrelas, quando passou um belo avião cruzando a sua depressão, então ele lembrou que algum anjo deveria estar conduzindo o pássaro de Santos Dumont ao destino.
K. chegou em casa. Calma. Tranqüilidade. Amor. Sua filha o abraçou ao chegar e sua esposa repousou aquele olhar, que ele bem conhecia, em sua face. Compartilhamento. Comunhão. Nenhum símbolo era mais precioso que aquele, nem mesmo o piloto francês poderia atingir aquele momento sublime na vida de um controlador de tráfego aéreo.