Quando nos transformamos num bando de bostas

Dias atrás recebi um e-mail enviado por uma amiga, no qual ela, com toda razão, questionava uma série de imbecilidades que estão se enraizando nas sociedades modernas e, ao final, perguntava aborrecida: quando nos transformamos num BANDO DE BOSTAS?

Pensei em cada palavra do texto recebido, concluindo que as pessoas de bom senso estão ficando atônitas diante dessas situações, muitas delas institucionalizadas. Decidi, então, por responder ao e-mail de forma satírica, com uma história faceciosa que criei (naquela hora), inspirada no clássico conto de Nicolau Gogol, O Nariz (1936). Eis a íntegra do e-mail que enviei:

"Então Nanci, queres saber quando nos transformamos num BANDO DE BOSTAS? Pois eu te digo!

O dia exato da transformação foi um domingo, 20 de fevereiro de 1972, quando o Sr. Ivan Capistrano Pederneiras, barbeiro de profissão, morador na pacata Nossa Senhora dos Pobres Espíritos Penitentes, pequeno povoado situado no Noroeste de Goiás (esse povoado foi exterminado pelos ‘homens’ em 1973, sob a alegação de ‘ser um local foco de comunistas safados’), leu o texto do russo.

Ivan barbeiro, como era conhecido no local, nasceu no bairro carioca de Irajá (logo no início da Segunda Guerra Mundial) e aos 32 anos parecia já um senhor de 50 (em 1972 um homem de 50 anos era considerado ‘velho’).

Nascido num subúrbio carioca, o barbeiro era devoto fervoroso de São Jorge (o pai de Ivan havia sido bicheiro em Madureira, onde trabalhara para o lendário Natal, influenciou a devoção) e um torcedor fanático do América, o 'mequinha carioca' (também influência do pai), cujos jogos acompanhava pelas poderosas ondas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.

Naquele distante domingo, no final do verão de 1972, Ivan barbeiro amargava um dia cinzento e chuvoso, que lhe trazia saudades profundas dos domingos de sol da sua infância, nos quais a família Capistrano Pederneiras se esbaldava nas cálidas areias da praia de Ramos. Sem ter nada para fazer (ou esperar), pois o dia do santo guerreiro (no qual ele fazia seu feriado particular e não trabalhava) seria somente em abril e o campeonato carioca só começaria, para o seu América, no próximo domingo, dia 27, o barbeiro resolveu dar uma arrumação do porão da lojinha anexa que havia recentemente alugado, tencionando ampliar sua barbearia para três cadeiras.

Mexe daqui, mexe dali, arruma isso, empilha aquilo e Dona Filozinha (Philomenna Maria Nepobuceno Pederneiras), esposa querida, já havia chamado para o almoço de cardápio simples, acertado pela manhã, durante o café: feijão, arroz, farofa, bife fininho de carne de cavalo (acebolado), salada de pepino e, para sobremesa, o indefectível Romeu e Julieta. Mas o mestre da tesoura e da navalha queria concluir a arrumação antes do tradicional banho que antecedia, sempre, suas simples, porém faustas refeições, que ele não era homem de deixar nada inconcluso. Pediu então a sua preciosa Filozinha que esperasse um tiquinho só, que ele já subiria.

Quando ajeitava uns objetos inservíveis depositados sobre uma pequena escrivaninha deparou-se com uma velha pasta preta feita de couro de porco e que não tinha fecho, sendo fechada por dois laços, um em cada lado, de cadarço também preto, totalmente coberta com o pó de décadas. Com o auxílio de um espanador e de uma flanela livrou a pasta do pó e tomado de uma até então desconhecida curiosidade, desatou, afobado, os dois laçarotes que a fechava e retirou do seu interior várias páginas de papel já amareladas pelo tempo (porém intactas), todas datilografadas.

Na primeira folha pode ler na parte superior TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS DE O NARIZ e logo abaixo, PRECIOSA OBRA DA LITERATURA RUSSA. No meio da folha lia-se, AUTOR: NICOLAU GOGOL e no rodapé, TRADUÇÃO FEITA NO OUTONO DE 1922. Não havia qualquer menção ao autor daquele trabalho.

O barbeiro recolocou as folhas na pasta, refez os laços, colocou-a sob o braço, apagou as luzes do porão, subiu a frágil escadinha e dirigiu-se à parte do imóvel que servia como residência para o casal Pederneiras.

Após a sesta, já passava das três da tarde, havia cessado a chuva e a temperatura era agradável, soprando uma brisa fresca que vinha lá dos lados do Rio Pacanu. Ivan pegou a pasta recém descoberta e foi para a varandinha. Sentando-se na velha poltroninha de vime decide-se por descobrir que história era aquela, de um russo que tinha o mesmo nome do seu sogro.

Meses depois, na primavera, já esquecida do rigoroso luto, a viúva Filozinha repetia pela milésima vez, para sua vizinha goiana, uma história muito louca.

Soubesse então a tal vizinha que naquele fatídico verão seu amado marido tinha ido para a varandinha com uma coisa preta debaixo do braço, ficou lendo um monte de papel velho até altas horas; por volta da meia noite saiu para a rua e desde então nunca mais parou de andar, nem para saciar a sede, nem para saciar a fome, nem para descansar suas finas pernas. Enlouqueceu o barbeiro, diziam uns; é feitiço, diziam outros. Alguns maledicentes diziam que teria sido uma briga feroz entre marido e mulher, logo depois do almoço de domingo, quando discutiram devido à grossura do bife. Um outro, bem íntimo da família, dizia que foi uma promessa que o finado fizera para São Jorge, obtivera a graça, mas não pagara (por pura avareza) o prometido. Mas tudo eram especulações.

Soubesse então a tal vizinha que eles se amavam e nunca brigavam por nadinha desse mundo de nosso senhor. Soubesse ainda que desde o dia em que saíra a caminhar sem rumo até o dia 23 abril, dia do seu santo protetor, quando caiu morto à beira de um riacho de águas cristalinas, onde nadavam, expertos, milhares de lambaris, seu querido marido, afirmava a viúva com as lágrimas caindo-lhe em cascata pelo pálido rosto, tinha sido acometido de uma maléfica afrenia, após ter lido o que estava escrito naquelas páginas amareladas; tinha certeza disso.

Anos depois, um pesquisador de certa Universidade Alemã, que andava por Goiás estudando a influência do azeite de pequi nos versos de Cora Coralina, soube da história e foi procurar a viúva, que já havia começado vida nova, casando-se com um búlgaro, dono do depósito de gás engarrafado e da quitanda do povoado.

Dona Filozinha, agora muito coradinha e usando um vestido curtinho e decotado, que o búlgaro já gostava de uma mulher bem ‘putchinha’ (como pronunciava), entregou a pasta ao alemão, que após abri-la e ler, ainda em pé, os primeiros parágrafos da tradução, disse rindo e com seu sotaque carregado: É Gogol! Está explicada a atitude do seu marido. Agradeceu, devolveu a pasta e se foi, para continuar a investigar o azeite.”

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Luiz Vila Flor
Enviado por Luiz Vila Flor em 10/04/2011
Reeditado em 10/04/2011
Código do texto: T2899884