Apenas mais uma lagrima
Eis que, quando uma alma põe-se a chorar,
Todo ser pode então sentir, o Agouro Carnal."
Novamente ela acordara junto ao despertador, novamente teria de receber sua dose diária de tortura, ter de mostrar-se feliz e satisfeita quando na verdade, em sua verdade, estava demasiada infeliz e repleta de magoas.
Ela aprontara-se com aquela mesma expressão triste, mas quem, tendo de passar pelo que ela passava todo dia, não estaria triste? Quando todo o dia tinha de olhar, abraçar, cumprimentar, ficar face a face com a amada e saber que eram amigas, apenas e somente amigas. Sim, essa era a grande tortura imposta a nossa amiga, ter de esconder de todos a sua face, seu verdadeiro eu, suas "True Colors" como a grande Cyndi Lauper disse em umas de suas canções. Ela teria de esconder de todos o que realmente sentia, seus reais desejos.
Frente ao espelho ela respirou fundo e seguiu em frente. Mesmo sendo difícil estar ali, ao lado daquela garota, nossa amiga gostava, mesmo sabendo que depois viria aquele sentimento de incapacidade, o sentimento de imperfeição, ela gostava. Sempre gostara. Aquelas manhas em que iam juntas á escola e voltavam para casa novamente juntas. Quantas vezes nossa amiga não resistiu a tentação de mais uma vez vê-la, quantas vezes não ficara horas na rua, com o pretexto de estar andando de bicicleta, apenas para vê-la. E mais tantas vezes não se desapontara em não ver.
"Devemos ser felizes?
Felizes com a falsa Liberdade
E a falsa Aceitação que nos foi,
Gentilmente, Concedida?"
Ela já estava no local, naquele tão conhecido ponto de encontro, naquela esquina em que ela, todos os dias, esperava, esperava gentilmente pelo colírio que faziam seus olhos brilharem, pelo ser que, com o seu sorriso, lhe fazia sorrir.
O tempo foi passando, segundo após segundo, minuto após minuto. Estava começando a se atrasar, logo desistiria e seguiria o caminho sozinha, apenas pensando no que poderia ter acontecido. Mas eis que nos últimos instantes, no momento em que a jovem iria virar-se e seguir, seguir por aquele tortuoso caminho de pequenos e grandes agouros, eis que sua amada chega em passos rápidos.
"Anda, estamos atrasadas! "
Pegou em seu braço puxando-a para que andasse mais rápido. Ela sorria, os olhos fechados distribuíam um ar de serenidade junto aquele valioso sorriso.
E mais uma vez foram juntas à escola, mais uma vez compartilhavam a companhia uma da outra.
"Cumprimos as mesmas regras,
Sentimos os mesmos desejos básicos,
Então por quê? Por que essa diferença?
Não somos... 'normais'?"
Após alguns minutos de caminhada vinha a separação, não estudavam juntas, na mesma sala. Não, a amada era um ano mais velha, talvez isso a tornasse mais atraente ou talvez sempre fora atraente. Os cabelos cumpridos e cor de mel, quase tão belo quanto os olhos, ah! Que lindos olhos, da mesma cor que o cabelo, tais olhos sempre brilhavam intensamente.
As três primeiras aulas sempre eram uma tortura, cada minuto era quase com que uma hora pra nossa pequena amante. E, depois de cento e cinqüenta minutos demasiadamente demorados, vinha o intervalo. Ah o intervalo, a hora em que ela via a amada mais uma vez, um pequeno sorriso, uma breve troca de olhares, e, ás vezes, uma ou duas palavras. Por fim, mais três aulas que demoravam tanto quanto as três primeiras a passar.
Ao fim de um período de aulas, mais uma vez ambas estavam juntas. Ela sempre era a primeira a sair da escola, uma coisa um tanto lógica ao se pensar na seqüência de idade. Então, sem nada a mais a fazer, só lhe restava esperar alguns poucos minutos. Os fones de ouvido mostravam que ela pouco se importava com que acontecia a seu redor, nem ao menos prestava atenção no som que tais fones exalavam. Os olhos fixos no portão, esperando a "amiga" aparecer. Talvez ela tentasse mais uma vez descobrir o porquê de, quando ao lado da amada, seu coração batesse tão intensamente quanto uma orquestra que apresenta uma bela melodia de Betthowen. Inúteis tentativas de encobrir o que ela já sabia, e não queria aceitar.
Como esperado, ela não demorou a chegar, mas não sozinha, como de costume, e tão pouco com uma amiga ou duas como raramente ocorria. Ela vinha junto a um garoto, um garoto o qual nossa amiga nunca antes vira. Eles se aproximavam dela conversando alegremente, ela tirou os fones e apresentou aquele conhecido sorriso falso a ambos.
" Mary eu não vou subir agora tá?" foi o que disse, apenas o que disse enquanto segurava a mão daquele garoto ainda desconhecido.
" Os caminhos se perderam, não há mais forças para lutar. Então, o que fazer? Como andar sobre a escuridão sem cair? Como amar sem ser amada? Seria melhor, então, criar um 'Fim'?"
Ela assentiu ainda sorrindo, não se deixem enganar, embora seu sorriso fosse belo e convencedor, era tão falso quanto uma nuvem de chamas negras. O que mais poderia fazer? Apenas sorrir, sempre sorrir.
Acenou a ambos antes de virar-se e dar os primeiros passos, andou um pouco, mais e mais um pouco até que parou. " Não vou olhar." Repetia a si mesma, os olhos um pouco marejados revelavam o que a pobre garota estava a sentir.
Em um movimento lento ela virou-se, melhor teria sido não olhar? Melhor teria sido apenas se afastar? Mas então por que ele virou-se? Seria ela masoquista? Não, apenas tinha um dom, o dom da esperança, ou seria uma maldição?
"Somos o que pensamos, entretanto nossas lembranças dizem quem somos. Por fim, se somos o que pensamos e nossas lembranças dizem quem somos, somos apenas algo que já foi."
A garota lembrou-se de algo que acontecera a poucos dias, lembrou-se do dia em que machucou-se e fora gentilmente acolhida nos braços de sua querida.
Era um dia frio, e, como de costume, ambas voltavam para casa juntas. Conversavam alegremente, falavam sobre escola, amigos, família e, por parte da amada, garotos.
Não fora algo que se posso explicar facilmente, apenas aconteceu. Acredito que nossa amante ficou, de certa forma, admirada pela beleza de sua amada, que não prestara atenção a onde ia, por onde ia. Em um minuto estava andando olhando para a amada e em outro estava sendo fortemente abraçada e sentia uma forte pontada na testa, acima do olho esquerdo.
Ela acertara uma daquelas pequenas lixeiras urbanas com a testa, ou a lixeira a acertara? A amiga a abraçava fortemente, aflita perguntava se ela estava machucada ou algo do tipo. O que não percebera fora que,por sua altura natural mais o salto que usava, nossa amiga tinha a face, que passou de rosada para escarlate, entres os fartos seios da amiga.
Naquela tarde ambas voltaram para suas casas rindo muito do acontecido, embora nossa amiga tivesse o rosto fortemente corado.
" Estamos sempre sendo enganados, Nossos sentidos nos enganam. Então, como podemos ser felizes, se estamos sempre nos Auto-Enganando?"
Aquela visão... Ali estava ela, olhando aquilo, sem poder acreditar no que seus próprios olhos viam. Tais olhos antes marejados, agora envolvidos em lagrimas. Talvez não se precise descrever o que ela vira, talvez vocês já possam imaginar, já possam ver a cena que fez a pequena apaixonada se envolver em lagrimas. Eles ali, juntos, enlaçados um ao outro, unidos por um beijo, um beijo. Um beijo!
"Talvez possamos mesmo ser felizes, Talvez possamos mesmos sorrir verdadeiramente. É, talvez em uma sociedade onde não existam preconceitos, Talvez onde possamos ser nós mesmos sem termos que fugir de palavras e pedras."
Ela não demorou a chegar em casa cabisbaixa, os pais os pais não encontravam-se, apenas um bilhete na porta da geladeira dizendo que não voltariam antes das cinco, e que o almoço estava pronto na geladeira. Almoço... ela não tinha um pingo de fome, apenas perguntava-se se um dia encontraria a felicidade, apenas gostaria de ser amada por quem ama.
Ela pensou por longos minutos, "aquilo" ainda estava lá, "aquilo" ainda era uma saída, ainda poderia usá-lo. Colocou uma cadeira frente ao armário da copa da casa e, do fundo, tirou um pequeno frasco com algumas minúsculas esferas negras.
"E enfim o fim,
O único fim a tudo,
A única solução para tudo..."
O pequeno recipiente do "fim" fora destampado, um copo com água e uma, duas, três, quatro... Quatro esferas negras, quatro chances ao fim.
"Anda logo, o que esta esperando?" Pensava " O que quer sua idiota? Mais sofrimento? Mais dor?"
Lagrimas nos olhos. As esferas sendo levadas a boca. Passos. Esferas a caminho. Passos. Lagrimas escorrendo pelo rosto frio. Passos. As esferas na boca. Passos. Vozes. O copo sendo levado aos lábios. Um nome. O silencio. O copo encostando-se aos lábios. Entrou. O frasco no chão destampado. O copo sendo virado. Passos rápidos. Um tapa...
" Todos mentimos, enganamos, fingimos, omitimos, resumindo, o Ser Humano mente, esconde. Mas, mesmo o Ser mentindo, mesmo nosso próprio corpo mentindo, muitas vezes a nos mesmos, seria os olhos e olhares capazes de mentir? Ou eles simplesmente entregam a mentira de qualquer ser?"
" O que esta fazendo?!" perguntou nervosa e aflita, sua presença ainda não havia sido notada até o momento.
Os olhos da garota se ergueram e rapidamente voltarem-se ao chão.
"Abra a boca!" Ela pegou a cabeça da amiga e lhe abrira a boca à força. Tirou uma, duas três... Três esferas negras e molhadas. As lagrimas que caiam silenciosamente agora se tornara um choro, um choro sentido e alto.
" Me... Me perdoe." Chorava no ombro da amada. " Eu... eu não quero mais, não posso mais. Me perdoe!"
" Perdoar? Quer que eu te perdoe? Não que mais? Não pode mais? O que você não quer mais, o que não pode mais?" Estava sendo rígida " Não quer mais gostar de mim? Não pode mais me amar?"
"Qual o sentido de nossa existência? Como saber se não estamos sonhando? Que não somos um sonho? Como acreditar que não somos apenas um software programado para acreditar. Acreditar que somos reais, que sentimos a dor, a saudade, o amor... E como saber que o amor existe? Pois dizem tal sentimento ser tão belo, mas tal beleza soa a mim como um humor negro que arrasa com muitos, e, apenas com escolhidos, mostra a "beleza" que muitos acr3editam existir."
O espanto não demorou a tornar-se um choro ainda mais forte que o anterior. Ainda nos ombros da amada, ela chorava forte, sem medo ou falsidade, chorava verdadeiramente.
'Desde o inicio. "Desde o inicio eu sempre soube, seus olhos Mary, seus olhos não mentem."
O choro continuou, e com ele veio o soluço, que, aos poucos, tornou-se uma tosse que a fez engasgar.
" Eu sabia que devia me afastar, sabia que estar por perto sói a faria sofrer uma vez que eu nunca poderia corresponder a esse 'amor'. Mas eu não queria me afastar, você é tão especial, tão legal, eu a queria como uma amiga, e, logo, você se tornou minha melhor amiga."
O engasgo já havia passado, mas ainda tossia um pouco.
" Mas eu fui egoísta, egoísta a ponto de não me afastar mesmo sabendo que era o certo."
Tossiu mais uma vez.
" Oh meu Deus! O que estou fazendo?!"
Ela levantou-se saindo dos braços da amiga e tirando um pequeno aparelho do bolso. Da geladeira, ela tirou uma caixa de leite enquanto discava os três dígitos da emergência.
"Beba." Lhe entregou o leite. A garota obedeceu tomando alguns pequenos goles do liquido, subiu os olhos pra ver a amada, mas não sustentou o olhar por muito tempo, todo o leite que bebera agora revolto queria sair do corpo da garota, e foi isso que fez, agora todo o liquido encontrava-se no chão da copa.
A outra garota abaixou-se e com a gola da jaqueta limpou os lábios da amiga com carinho.
"Egoísmo, Amor, Amizade, Paixão... Seja qual for sempre temos alguém que nutre algum sentimento por nos, alguns podem não ser bons, mas para cada um mal, haverá dois bons. Para encontrá-los precisamos apenas deixar de olhar apenas para o que nos ensinaram a olhar."
A garota olhou para a amada, ela continuava linda, novamente seus olhos se envolveram em lagrimas.
" Muitas vezes somo egoísta e não percebemos, eu fui egoísta a fazendo sofrer ao meu lado, e insensível ao me deixar ser vista com outro por alguém que eu sabia que me amava. Peço que me perdoe por tanto sofrimento"
Desta vez quem tinha os olhos marejados era ela, Mary não respondeu, apenas levantou-se e abraçou apertadamente a amada. Quando separadas ambas sorriam, e a garota beijou delicadamente os lábios da amiga, uma amostra de carinho antes de nossa amiga cair ao chão desacordada.
A ajuda não demorou a chegar. A garota não saíra do lado da amiga em hora alguma.
Na casa, agora silenciosa, uma pequena possa de um liquido branco estava sobre o chão, e, ao centro dessa possa, podia-se ver um pequeno ponto negro se dissolvendo, uma esfera negra se perdendo, era o fim tão esperado, fora um fim inesperado.