Rio Grande, Rio Grande...
Guardo as melhores recordações de Rio Grande. Morei na Rua Moron, bastando dobrar a esquina para me encontrar na banca da rodoviária. Comprando gibi e figurinha em meio ao movimento peculiar da saudade se deslocando. Rodoviária é ambiente aonde a saudade mora com seu ir e vir de conforto. Quando chegava perto das treze horas o apito da fábrica de peixe era um constante aviso de que a escola estava me esperando. O Colégio São Francisco era meu refúgio de menino calado ao extremo. Na esquina ficava a Igreja de Nossa Senhora de Fátima disponível para complementar minha infantil vocação religiosa. O menino queria ser padre.
Um incidente ou dois mudaram o rumo dessa inclinação eclesiástica. O primeiro incidente ocorreu numa tarde de coroinha na missa das seis quando repentinamente declinou a luz da tarde. O padre solicitou que fosse até a sacristia acender ás luzes. Prontamente me dirigi até o local indicado, abri a porta e, para minha surpresa, havia uma enorme quantidade de chaves e botões, além de fios elétricos. Retornei em meio a missa para cochichar ao padre uma indagação: qual era a chave certa? A reação do sacerdote foi humana, todavia com palavras ríspidas demais para minha ingenuidade. Retornei a sacristia, porém impregnado de nervosismo e indecisão. Começou o inusitado espetáculo de luzes que se acendiam e apagavam. A Virgem Maria recebeu vários efeitos de luzes coloridas que apagavam e acendiam por alguns eternos minutos, até que acertei. Não sei como acertei, mas sei como me senti oprimido pela reação dos fatos.
O menino da escola São Francisco era afetado por bilhetes da professora: menino comportado, com boas notas, mas não participa das aulas. Ficar em absoluto silêncio era meu modo de aceitar recusando. Os conflitos em torno de mim me levavam a essa ausência de afeto indistinto até o silêncio concreto e determinado.
Com o passar dos anos a transferência de cidade nos levou para um lugar isolado. O extremo sul do Brasil. O poder do câmbio favorável ao cruzeiro. Partimos para Santa Vitória do Palmar. Nasceu a primeira paixão. A mais estudada pelos psicanalistas que é a transferência primeira do amor materno para longe do seio familiar. Shopenhauer escrevia em minha alma as primeiras dores do mundo. Amor irreal. Veio o primeiro amor físico com uma jovem de Rio Grande que passeava em Santa Vitória. Quanta sensualidade, quanto naturalidade tem essa cidade histórica e lírica no corpo da suas mulheres. Até hoje vejo Rio Grande com grande romantismo. Romantismo de cais, romantismo de porto, romantismo das ruas entre bares bordejando o canalete com ares de Copacabana. Romantismo do primeiro livro lido na Biblioteca Pública “O gato de botas” com páginas tridimensionais. O romantismo da praia do Cassino, alegre, vivo. Saudade das paradas militares para ver o pai marchando todo de branco cantando o Cisne Branco, caminhando comigo pela mão, me mostrando a estátua dolorosa de Marcílio Dias no retorno para casa. Os calmos banhos nas águas doces do riacho do Bolacha.
Rio Grande é uma cidade agradável com adorável facilidade para o diálogo comum de rua. Gente simpática e alegre. É pena que o jornalismo não tenha me absorvido, senão estaria escrevendo em Rio Grande, escrevendo para o panfletário “O Peixeiro”. Jornal que prosperou com belíssima história na imprensa do Rio Grande do Sul. Prosperou nos tempos bicudos distribuindo exemplares na entrada do Cine Glória e cine Avenida. Grande saudade tem este coração de Rio Grande. Saudade da Praça Tamandaré onde comia cande, no mesmo lugar onde Vargas fez discurso no coreto e minha avó Edelvira estava lá com minha mãe e minha tia no dia 26 de setembro de 1950.
Grande júbilo tive há poucos dias quando recebi de minha tia Eva a miniatura em bronze de Getúlio Vargas, feita por meu avô que trabalhava na fundição da Aviação Férrea. Miniatura rara, tão rara quanto Rio grande com seu modo discreto de jeito histórico.
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