O luto e a luta contra novos preconceitos.
Depois da tragédia abominável ocorrida na Escola Tasso da Silveira, em Realengo, vários canais de televisão começaram a traçar – com ajuda de especialistas – um provável perfil de Wellington, que matou cruelmente e friamente doze crianças e feriu mais doze. Nas mesas de debate, algumas teclas tem sido insistentemente batidas e dizem respeito às caracteristicas desse perfil: o “esquisito”, o “estranho”, o “muito tímido”, o “reservado”, ter sofrido bullying na escola, ser adotado, ler sobre o Islã, ser filho de "uma doente mental" etc. “Em quatro anos não ouvi mais de três palavras, frases, ditas por ele”, “vinha do trabalho pra casa e ficava no computador”, “era isolado”... Pergunto então: quantas pessoas com duas, três, quatro características deste perfil você conhece ou conheceu? Eu estou incluída no mínimo em quatro dessas características. Trabalho com crianças há mais de quinze anos. Deveriam começar a me vigiar, pois talvez eu seja uma louca de pedra. Conheci muitas crianças muito tímidas, que quase nunca consegui ouvir suas vozes em turmas de quarenta alunos, pessoas reservadas, reclusas, que se tornarem pais de outras crianças, homens e mulheres de bem, do bem. O meu medo é que quando começam a apresentar na mídia televisa tantos rótulos fáceis, tudo isso tem efeito imediato e colateral. O que vão fazer agora? Monitorar os que sofrem bullying nas escolas, como se não bastasse a carga de preconceito e isolamento que essas crianças já sofrem? Vão isolar ainda mais os tímidos ou tratá-los como os prováveis esquizóides do futuro? Vamos colocar coleira eletrônica nas pessoas reclusas e reservadas? Quem fica horas no computador é maluco? Quem vem do trabalho pra casa e não fica no bar jogando conversa fora, pode ser visto como um esquisitão? Será que uma “infância turbulenta” pode ser usada prioritariamente para determinar o perfil de um provável assassino? Nossa vida (hoje!) em sociedade não tem nada a ver com o surgimento ou manifestação de patologias destrutivas e autodestrutivas? Que tipo de política publica temos hoje no nosso país que oferte tratamento digno e gratuito às muitas crianças que necessitam de ajuda psiquiátrica, mas não tem recursos?
Penso que essas “pseudo-análises”, porque não se tratam de análises profundas, mas superficiais, poderiam ser repensadas antes de veiculadas sem o tratamento necessário, adequado. Elas podem suscitar mais estigmas, mais violência, mais preconceito, mais intolerância, entre os jovens e as crianças principalmente, porque são eles que ainda estão no processo de construção de um filtro que descarte aquilo que não deve ditar uma representação do outro, uma visão de mundo.
Para dar um exemplo do efeito “errado” que esse tipo de avaliação pode causar. Eu – na minha liberdade de expressão - posso dizer aqui que o irmão adotivo de Wellington relatou que depois que ele viu “na televisão” o ataque terrorista de 11 de setembro, ele passou a pesquisar sobre armas e coisa do tipo na internet. Ao vivermos numa “aldeia global”, onde há glamorização da violência e estímulo ao uso de todo tipo de droga - nos filmes, nas propagandas de bebida etc, e se ainda há sites que ensinam a usar armas de fogo, que mercantilizam a violência, que incitam o ódio racial e religioso, então posso “demonizar” de forma maniqueísta e idiota os canais de televisão e a internet. Podemos fazer isto? É justo? É ético? É prudente? É confiável?
Talvez reste esperar que apareça alguém que problematize de fato a questão e até mesmo o perfil do assassino a partir, no mínimo, de um bom senso. Pois cá fico temendo que eu e o Luís Fernando Veríssimo, tímidos e reservados assumidos, já estejamos na lista do “caça às bruxas” da vez.
Há muitas questões a serem discutidas e solucionadas – como o tráfico de armas, que facilita a ação de assassinos de todo o tipo no nosso país; como também a segurança (sim!) nas escolas públicas; como o necessário apoio terapêutico que todas as crianças, professores e funcionários, que sofreram esse terrível trauma, devem receber nos próximos dias, meses. Além dessas questões, precisamos nos unir na cobrança de ações que coíbam o uso de armas ilegais; assim como é fundamental pra sociedade civil que se reflita a importância do desarmamento e de se ampliar medidas, formas diversas de propagação da cultura da paz.
Fica aqui o meu profundo sentimento pelas vítimas desta tragédia, a esperança que este tipo de ação ocorrida nunca mais se repita e que novos rótulos e falsos diagnósticos não surjam daí nas nossas mentes e escolas.
Patrícia Porto