A conta

“Aes sunt quod aliis nobis debentur”*

“Crédito é o que os outros nos devem”.

Durante onze anos topou com o azar do crédito público. Jovem ainda buscou crédito no banco. Estava desempregado e havia um anúncio de apoio, desses tão expressivos nessas horas de desgraça. Estava saindo da morte para ser lançado na desgraça, foi o que percebeu ao lamber os selos do pequeno negócio postal que jamais alcançaria êxito. Lutaria para cumprir com suas obrigações – todavia compreendeu também que necessitava duplicar o crédito. Mas agora era tarde. Havia encontrado o famoso crédito fiduciário e o flagelo.

Quando um jovem está começando ele crê piamente na extensão total da sua sorte. Havia em seu mundo a cidade com trinta mil habitantes e um único correio, ele se fixaria a mais de cem metros da matriz. Seu tipo calado e quieto não instigou o povo tradicional a modificar o seu trajeto. Correio era apenas aquele que estava no centro da cidadezinha. Havia como problema maior os serviços não repassados que lhe renderiam alguma lucratividade. Vendia selos lembrando calado que o cliente mais forte da comarca na compra das estampilhas era o Fórum.

Em pouco tempo sem poder alimentar esperanças e com pouquíssimos recursos ao chegar da rua no estabelecimento comercial viu o ambiente vazio. Não havia mesa, cadeira, balança de precisão, computador, nada. Estava tudo acabado. Restava apenas uma companheira de olhos assustados, graças a presença da polícia nessa ordem imperial de levantamento de todos os bens do contrato.

Geralmente perto das festas de fim de ano começavam as tormentosas intimações, aquelas que lhe arrancavam o espírito da alegria. Teve habilidade de negociar o ponto, quando do falecimento do suposto proprietário, da casa que alugava. Por sorte outra alma boa comprou-lhe a casa numa situação de compra judicial. Enquanto isso não acontecia sentia a justiça como gigantesco mecanismo de opressão e frio trato. Sua necessidade de tentar o trabalho não poderia ser compreendida como dilapidação de valores, mas era como se fosse. Era-lhe notável como esse sistema altamente organizado era utilizado para imprimir nos desenganados a mais grave sensação de ameaça.

Com ajuda familiar recebeu uma quantia em torno de cinco mil reais de um título em seu nome. Sua divida de sete mil cruzeiros, havia pulado para dois milhões de cruzados, para fins de imposto sobre a renda. Tudo sobre ele claramente organizado, menos ele, apenas isolado no processo. Exatamente no dia que recebeu a quantia recebeu a nota do outro banco para negociação da dívida. O pobre sempre sente o peso de uma exploração perdida.

Seus advogados de defesa lhe deram a atenção de um cego na contemplação de um quadro, ainda que perfeitamente pincelado. Penso que lhe maldiziam a existência em reclamar como devedor. Um estado livre é um estado sem devedores. Passava por azedo. Os advogados de defesa eram constantemente substabelecidos dentro do procedimento, assim como os nomes das crianças pulam na chamada da escola, sem que ele próprio pudesse compreender quem estava no comando. Se alienação fiduciária é isso, estava realmente alienado. Nada podia e não podia nada.

O primeiro advogado de defesa saiu da cidade deixando para trás más lembranças das causas pendentes e destroçadas nos prazos; velhos, desvalidos, gente rústica que mal sabia o que estava se passando; confiantes no advogado que havia mudado de rumo sem aviso. No tocante ao seu processo apenas lhe diziam sem muita análise da matéria que a situação estava perdida. Somente aos sessenta anos poderia ter algo de seu no seu nome.

Amizade com advogado na cidade interiorana é espécie de certidão da boa-fé, mas nem sempre dá resultado. Foi um amigo da família quem resolveu “pegar” a questão perdida. Juntos tomaram a tese de “acordo para pagamento” ao contrário de escoar a dívida pelo tempo como todos fazem. O valor requisitado passou por irreal, mas correto e o banco então lhe forneceu uma conta poupança dando por encerrada a questão por parte do banco. Pagou. O gerente encaminharia as provas do pagamento ao fórum. Sairia dali novamente íntegro, porém com poucos papéis, e em nenhum deles escrito grosseiramente: pago. Terminou, acabou o processo. Deixaram-lhe a promessa de devoluções dos bens não arrematados no leilão, bem como a devolução da importância dos objetos leiloados.

Está esperando até hoje. Incapaz de ser compreendido como um homem lutando por dinheiro e oportunidade. O banco ao ser indagado dessa finalização importante apenas diz: é a vez do fórum. Tudo era no fórum. Ouvira de seu avô que ninguém enriquecia no Brasil sem advogado e delegado. Não compreendia bem a segunda parte, porém sentia que a idéia de enriquecer através de processos vitoriosos é um dos sonhos plantados na América. Espécie de câncer no seio do capitalismo brutal. O Estado é emblema, a justiça o banco. Lá onde se contorce as fortunas e os desafortunados como a alma dos degredados no inferno. Sem equiparação: fortuna ou desgraça. O Estado que é de todos, jamais interfere, apenas arrecada, arrecada, arrecada sobre os azares. Cuspindo horrores aos deveres que não cumpre.

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* “Crédito é o que os outros nos devem”.

Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 07/04/2011
Reeditado em 07/04/2011
Código do texto: T2895152
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