Dos ovos, da solteira e da codorna
[Publicada no caderno Mulher Interativa - Jornal Agora/RS - março/2011]
Abri a geladeira em busca de algo para aplacar, não a fome, mas, sim, a vontade de comer. De interessante, até então, só as azeitonas. Passei de mão no pote e as comi, ali mesmo, sem sair de dentro dela – uma geladeira, quando escancarada e encarada com um pouco de tempo e atenção, pode mostra-se bem interessante! Sobretudo quando você está se sentindo extremamente sozinha numa noite chuvosa de fim do mês. E mais ainda quando esta chuva é tempestade e este mês é março – o que, num certo calendário, fica entre o fim e o aniversário de início de um casamento recém-falido. Ok, recém-rompido.
Pois bem, lá estava ela, digo, eu, às portas da geladeira – meio cheia, meio vazia – levando às mãos e, alternadamente, à boca, uma taça de vinho tinto, enquanto beliscava azeitonas ainda no pote, das quais, por ironia numérica, foram comidas sete, conforme contavam os caroços na minha mão. E, como se sabe, os caroços não mentem: sete – sete! Sempre o maldito sete a me perseguir nos momentos mais surreais da vida, mas, prossigamos... Vestindo um penhoir azul, lá estava ela, digo, eu, bebendo vinho tinto e comendo azeitonas verdes às portas de uma geladeira branca...
Insônia: geladeira adentro, madrugada à fora. O cúmulo da decadência! Até que outro item alimentício destacou-se: pequeno, simpático e esférico – assim como as azeitonas recém-comidas – eis que havia brotado um ovo de codorna onde antes era um buraco vazio. Quem o pôs? Como pode? Eu, realmente, não fazia ideia! Mas tinha aquela certeza das mais absolutas de que, pouco antes, naquele pequeno espaço, localizado no canto direito da parte já – ou melhor, “antes” – vazia da caixa de ovos, não havia ovo algum, nem dele rastro, por menor que fosse!
E, não, eu não havia bebido. Ao menos não o suficiente para diluir a lucidez. O que me fez, dessa vez, não perder-me em devaneios e nem tardar a alcançar a hipótese mais provável: “alguém mexeu nos meus ovos! Só pode!”. É o preço que se paga por deixar a geladeira a mercê de terceiros – se, por um lado, alguns deles lhe abastecem, por outro, dela se alimentam. E, o pior: ousam mexer os ovos de lugar. De codorna, ovos de codorna. Por que alguém se importaria com coisas tão pequenas? Por que trariam o caos a uma caixa de tamanha delicadeza?
Talvez por saber que quem controla a geladeira, em breve controlará a casa inteira. E que, quem cuida dos ovos, manda no ninho! Por isso está implícito no código de conduta do solteiro que assim pretende permanecer:
* Regra número um – jamais dê as chaves a alguém, especialmente se esse alguém tiver tara por algemas.
* Regra número dois – visitas são como peixes: livre-se delas antes que comecem a feder ou passar tempo demais dentro d’água.
* Regra número três – quem comanda o controle remoto, o fogão; quem controla o comando do carro, da cama; quem faz as honras da porta de entrada, da geladeira, em breve lhe terá preso numa coleira de rédea bem curta atendendo por alguma simpática alcunha num “diminutivozinho” e fazendo-o abanar o rabinho, sempre que contente e ordenado.
Portanto, mexeu nos ovos, mexeu também no seu tão delicado estado de conservação.
E foi ali que percebi não me restar-me nada a fazer, a não ser pô-los em seus devidos lugares: os ovos, as visitas e os amantes. Os primeiros, conforme apontam os espaços vazios da caixa apropriada. Os segundos, conforme o adiantar do relógio, a saída. E os terceiros, bom... Os terceiros devem aprender, o quanto antes, que nos ovos de um solteiro, não se mexe, independente do gênero. Não sem a devida autorização! Caso contrário, a porta da geladeira será a penúltima serventia da casa. Batida em suas costas, ante a saída.
Exagero? Nem tanto. É a duras penas que se aprende que manter-se solteira é uma atividade sem tréguas! Quando na soma destes fatores, a solidão beira o desespero, passar algum tempo na geladeira não é uma má ideia.