Parece que foi ontem
 
Neste ano de 2011 completo sessenta anos. E daí?
Milhões de pessoas também completam. Sou apenas mais um.
O que fazer? Recolher à minha insignificância e ignorar o acontecimento?
Organizar uma baita comemoração com parentes e amigos?
Nada disso.
Vou contar uma história, com h mesmo, pois, concordo com Mário Quintana, que diz: “o contador de histórias não é um contador de estórias (...) se eu nunca pronunciei a palavra desse modo?”. E dentro dessa história, outras histórias. Se o leitor ou leitora achar cansativa, tudo bem, não prossiga. Porém, adianto que a história é sucinta e surpreendente. Ela começa assim:
Era uma vez....
Um menino que estava dentro da barriga da mãe e queria dormir, mas a genitora não parava quieta. Lavava roupas, varria a casa, preparava o almoço para uma renca de filhos, marido e mais dez roceiros, que capinavam o mato da lavoura. O menino esperneava, mas a mãe não tomava conhecimento da batalha que estava sendo travada em seu útero. Vez em quando ela enxugava o suor da testa. O menino se aquietava, solidário com a mãe.
Em 20 de outubro de 1951, século 20, a que horas exatas o narrador não sabe, um berreiro ecoou nas brenhas dos confins de Minas.
O menino nasceu de parto normal pelas mãos de uma parteira, que cuidou do garoto durante o resguardo da mãe. O umbigo foi curado com folha verde de fumo, esquentada na chapa do fogão de lenha. Foi ainda nas mãos da parteira que ele fez uma espécie de promessa...
O menino foi crescendo e fazendo tudo que uma criança faz, ouvindo histórias que a mãe contava à beira do fogão de lenha.
 
Vamos dar um salto nesta história. Estamos agora no início dos anos 60 e o menino começa a ter ideias própria.
O nosso pequeno caipira gostava de ouvir The Beatles, no rádio am, sintonia difícil, chiadeira, enquanto quase todos ouviam Tonico e Tinoco e outras duplas sertanejas. E se enchia de orgulho com Renato e seus Blue Caps, nas vozes do quarteto de Liverpool. Para ele os Beatles copiavam Renato com versões em inglês e não o contrário. Cumprir a promessa ganhava contornos, crescia junto com o garoto...
É também nesse período que ele entra na campanha do pai, candidato a Juiz de Paz pela UDN. Não entendia de política, nem para que servia um Juiz de Paz, gostava mesmo de ler fotonovelas, quadrinhos e livros de bolso, de faroeste.
Em seguida o filho da mãe leu Guerra e Paz, de Leon Tolstoi e se encantou com o Príncipe André e a Princesa Natasha. Viu o exército de Napoleão Bonaparte sucumbir de fome e frio. Viu Moscou em chamas. Contou os mortos. Abandonou as fotonovelas e os quadrinhos. Leu José de Alencar, Dom Casmurro (Capitu, a cigana oblíqua e dissimulada deixou-o confuso), O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha (soube que um homem podia desejar outro), Olavo Bilac, Fagundes Varela, Cecília Meireles, Raimundo Correa... Ah, a promessa! Haveria de cumprir.  
... E deu o seu primeiro beijo em Maria José, doce e meiga Zezé. Ela tinha a pele macia e branca como a neve, os lábios rosados. Acariciou seus seios e pernas. Seu primeiro amor acabou junto com o fim das férias. Zezé, que estudava em um colégio de freiras, passou as férias no sítio da família, a convite da irmã do garoto. Nunca mais se viram.
Trabalho e estudo eram o cotidiano, porém mais trabalho que estudos. Levantar de madrugada, ajudar na lida. Pouco tempo para leituras e lazer, como jogar futebol no terreiro de Seu Carlos. O lugarejo ficava pequeno para seus sonhos, imaginou a partida:
 
Partirei, sim partirei!
Em busca de um ideal,
Para onde vou não sei,
Sei que vou, é o substancial...
 
Depois veio o golpe militar em 31 de março de 1964, perseguições políticas. O pai teve de se mudar com urgência. O garoto continuava suas leituras, jogando bola, mas as dificuldades financeiras aumentaram. A promessa seria cumprida? Perguntava para si.
 
Internato
 
Nesse ponto a história passa a ser contada na primeira pessoa.
Meu pai acreditava que o golpe militar, para ele, revolução, viera para deter o comunismo. Mas, ao ter de sair correndo de onde morava, ameaçado pelos próprios correligionários da UDN, abandonou o engajamento político. Foi morar na cidade. O parco patrimônio acumulado em anos de trabalho exauriu-se. Em nossa nova morada, tive acesso à biblioteca da prefeitura. Li todos os livros da pequena biblioteca, inclusive de psicologia e filosofia Estava com dezesseis anos. Ali tomei meus primeiros porres de cachaça com coca-cola com os amigos Marquinhos e Edmundo.
Em seguida, 1968, me matriculei em uma escola agrícola, em regime de internato. Era o ano em que o General Ernesto Garrastazu Médici editava o famigerado Ato Institucional Número 5 – o AI-5. Breve estaria no embalo das propagandas do ditador “este é um país que vai pra frente”; “ninguém segura este país”; “ame-o ou deixe-o”. Não sabia da existência de torturas, estava no melhor dos mundos possíveis, o mundo de Pangloss. Queria concluir o curso ginasial, realizar o sonho de me formar em Técnico Agrícola, comprar um pedaço de terra, construir a emancipação e, finalmente, cumprir a promessa.
Os três anos de internato foram felizes. Escapei das dificuldades domésticas e me diverti muito. Fui protagonista em duas peças de teatro, dirigidas pelo professor Filogônio. Pratiquei esportes. Fazia discursos enaltecendo a pátria amada sob os aplausos dos colegas, do professor de Moral e Cívica e do Diretor.Trabalhei em projetos agrícolas, vi a novela Beto Rockfeller em preto e branco, ouvi Os Mutantes, Tim Maia (Ah, se o mundo inteiro me pudesse ouvir, tenho muito pra contar...”), Creedence, roubei frutos no pomar da escola, ganhei duas suspensões. O líder estudantil foi um fiasco.
Não realizei o sonho de me tornar técnico agrícola, pois o mar não estava para peixe. Precisava trabalhar. Meu pai, com o resto de economia, comprou um sítio bem menor e tentava se recuperar dos golpes, não da ditadura, mas dos anos de vida urbana. Nascera para viver no campo, plantando lavouras. Dias difíceis. Eu não esquecia a promessa!
 
Rumo à capital
 
A literatura, a música e o cinema sempre fizeram parte da minha vida, desde a préadolescência. Mas ao me transferir para a capital mineira, em 1972, em busca de emprego, as mudanças foram radicais. Neste mesmo ano fui admitido em uma metalúrgica multinacional. Ao receber o primeiro salário, não sabia como gastá-lo. Nunca vira tanto dinheiro em minhas mãos, fruto do meu trabalho. Com muita dificuldade e má vontade, conclui o segundo grau. Ainda assim tentei, por duas vezes, o vestibular. Na primeira tentativa errei a hora e perdi a prova. Embora eliminado, fiz as outras. Na segunda tentativa não passei a primeira etapa. Aí não tentei mais. Honestamente, não gostava de estudar. Queria me divertir um pouco. Cinema, literatura e discoteca. Vivíamos o auge do milagre brasileiro. Não parava de ler. Depois conheci Sartre, Hemingway, Dostoiéviski, Albert Camus, Fernando Arrabal, Jean Genet, Drummond... Então, cai em minhas mãos O Manifesto Comunista, edição clandestina. Li quase tudo de Marx e Engels: A Dialética da Natureza, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Os Dezoito Brumários de Napoleão Bonaparte, fragmentos de O Capital, Maiakoviski, Brecht, Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Graciliano Ramos... Os jornais O Pasquim, Opinião, De Fato, Movimento... No cine clube da UFMG os filmes: O Voo da Cegonha; A Balada do Soldado; O Encouraçado Poutekim... Jean-Luc Godard, Fellini, Nelson Pereira dos Santos, Glauber... As músicas de Chico Buarque, Gilberto Gil, Geraldo Vandré... Tudo isso fez um reboliço em minha cabeça. O tempo passando. A hora de cumprir a promessa se aproximava. 
 
As viagens
 
Neste ano de 2011 recordo os dias passados. Parece que foi ontem. Ainda me lembro da parteira me olhando com um sorriso de alegria. Trabalhei muito, participei das lutas pela redemocratização do país. Literatura, música e cinema ao meu lado. Tenho sete livros publicados e preparo o oitavo.Participei de algumas antologias. Não acredito em destino, mas certos momentos são decisivos. Se meu pai não tivesse se envolvido em política conservadora nos anos sessenta, provavelmente minha vida teria outro rumo. Se tivesse sido aprovado nos testes da Usiminas, talvez caminhasse em outra direção. Ou se tivesse passado no vestibular, talvez não escrevesse. Se isso, se aquilo. O fato é que estou aqui, vivendo o que me cabe neste latifúndio cósmico. Como Górki, minha universidade foi e continua sendo a vida. Na segunda metade da década de 70 até o final da década de 90, estive engajado no movimento sindical, político e popular. Sem deixar morrer meus sonhos. Fiz as minhas viagens ao som de Led Zepelim, Pink Floyd, Gilberto Gil, Elis Regina, Mercedes Sosa, Leonard Cohen, Janes Joplin, Vinicius de Moraes, Chico... Nunca delatei ninguém. E estou convicto de que vou cumprir a promessa feita sob o olhar bonito da parteira.