Numa casinha de madeira
Estou na casa de meus avós, ambos se encontram vivos e bem, pois um dos encantos dum sonho, é trazer de volta aqueles que jazem sobre o solo frio. A casa é de madeira, o aroma de verniz, que lembro de minha infância, preenche o local. Recordo que era preciso galgar uma escadaria irregular de pedra, com lâmpadas presas em galhos com o intuito de fazer do escuro, claro, para se chegar à entrada daquele lar, desta vez não foi, outra beleza do sonhar. Enquanto caminho pela casa, a madeira range, um som agradavelmente familiar, não sei se realmente ouço o protesto das tábuas ou se é fruto de minha memória, é indiferente, ando com passos pesados somente pelo prazer de ouvi-lo. Outro ruído familiar me vem aos ouvidos, o barulho do gancho mal lubrificado que sustenta uma rede de cores claras na varanda, ela vai e vem com o vento, e traz consigo aquele delicioso som arrastado. Quantas vezes já adormeci embalado naquele leito suspenso, com este som relaxante e o odor de mato regado a orvalho pela manhã. O cheiro doce de eucalipto, o ladrar de uma velha cadela, o bater de asas de um beija-flor, uma tosse abafada por mão calejada, uma infinidade de risos perdidos que ecoam pelas paredes, tudo isto e mais um tanto permeia o ambiente. Perdido em meio à tantas sensações que mal me recordava, possivelmente trancadas no âmago de meu ser, a fim de dar-me imprescindível suporte que nem noto, ouço um chamado que não escuto.
Viro-me imerso em penumbra, como sempre me ocorre em sonhos, e vejo minha avó, tal como ela era, sorridente convidando-me à mesa. É incrível vê-la como a via antes da terra engoli-la, pequenina, curtos e encaracolados cabelos grisalhos, redemoinhos de prata que adornavam seu rosto, do olhar emanava amor, sorria aquele sorriso com belos dentes um pouco amarelados, que me acompanhou desde mais tenra idade até o dia em que se foi para não mais voltar. Sinto-me inchar de júbilo enquanto tomo meu lugar à mesa. Como não sei o que, mas parece delicioso, rimos os três e não sei o motivo, ouço vozes, vejo lábios se movendo e risos se formando; não compreendo as palavras que as vozes deveriam formar, não preciso, sei o que elas transmitem. Após a lauda refeição, sento num sofá, minha vós o meu lado, com um braço entrelaçado no meu, enquanto com a outra mão dá carinhos tapinhas em meu joelho. Meu avô vai até um armarinho com portas de madeira entrelaçada, criando um quadriculado hipnótico, apanha dois pequenos cálices de vidro com padrões dourados desenhados, ainda que o ouro seja falso, não deixa de reluzir tanto quanto o verdadeiro. Enche-os com licor de cereja, o tom avermelhado do líquido encanta, dá-me um dos frasquinhos, inalo o doce aroma da fruta, num brinde silencioso sorvemos ao mesmo tempo aquele breve manjar, com gosto de fruta madura no verão, ele toma assento em seguida. Agora vejo com olhos que não são meus, formamos um trio perfeito no sofá, a televisão à nossa frente lança luzes que se refletem na madeira escura do assoalho em que repousam nossos pés, envoltos apenas por meias, desprovidos de calçados. A avó faz-me um cafuné que há muito não sinto, que durante minha infância, por mais vezes do que ouso enumerar, carregou-me até um sono tranqüilo; meu avô coloca a mão sobre meu ombro, e um sorriso brota em meio à barba grisalha, sinto a firmeza de seus dedos e orgulho no modo em que me olha. Vejo-me apoiar a cabeça, com olhos fechados, no seio da velinha contente ao meu lado, bocejo preguiçosamente, sorrindo pacificamente. Tudo começa a esfumaçar-se, sei que breve despertarei, por mais que deseje mais do que qualquer outra coisa permanecer ali, estático naquele momento, por tempo infindo. Sei que é impossível, e mesmo saboreando o doce pesar da despedida, me dá conforto saber que terei a lembrança do mais belo dos sonhos, para aliviar-me das intempéries do dia que fatidicamente virá.
Acordo com um amargo amarrando minha boca, um cão inconveniente late logo abaixo de minha janela, ainda está escuro, mas há algo estranho, um sentimento de infinita ternura se acomoda em meu peito. Sento na beirada da cama, os pés no chão cálido, fecho os olhos e tento descobrir da onde este inusitado sentimento é oriundo. Não consigo precisar o que quero, e quanto mais ferrenhamente o tento, mais ele se afasta, dentro em pouco, larga aquele familiar vazio dentro de mim, companheiro de longa data. Dou um falso sorriso, não sei para quem, esfrego o rosto com as mãos e ponho-me de pé, dou a volta na cama e separo as cortinas, vejo que a alvorada, com seus primeiros albores, não tarda a chegar. Fico ali parado, a brisa de outono toca meu peito descoberto, faço um derradeiro esforço, vão, seja lá o que foi que pareceu tomar conta de mim, foi-se, mera ilusão.
O dia corre como sempre há de correr, inexoravelmente num único sentido de tempo, faço o que tenho de fazer, como sempre, de mãos dadas com uma tristeza, que se tornou minha consorte. Num certo momento, ela infla, beirando tornar-se insuportável. Então, um comichão, um lampejo de alguma coisa, por um átimo brota em minha mente a imagem de uma casinha de madeira perdida entre eucaliptos, em seguida ela se vai. Aquilo que me corroia, não acompanha a imagem e se dissipa, mas torna-se de certa forma tolerável. Sorrio, desta vez genuinamente, e apático volto a fazer o que tem de, por minhas mãos, ser feito.