MACHADO E CARTOLA
Alguns traços de genialidade se confundem com fenômenos igualmente desconhecidos pela ciência. Quando alguém se manifesta potencialmente além da convencional “normalidade”, as hipóteses admitem até o sobrenatural. Sobretudo quando não apenas uma considerada precocidade, mas uma estranha origem torna inaceitável que determinado elemento se destaque por algum feito que o torne incomum.
Há nas artes em geral, especialmente na música e na literatura, alguns exemplos típicos até hoje não satisfatoriamente compreendidos pela humana curiosidade investigativa. Mozart aos oito anos de idade compôs sonatas para flauta e piano. Precocidade de gênio para muitos, fenômeno sobrenatural para outros. Descendência ou herança espiritual, diria outra corrente.
Atenho-me particularmente a dois exemplos que se assemelham na origem, na trajetória e na produção: Machado de Assis, na literatura e Cartola (Agenor de Oliveira), na música popular. Ambos de origem humilde, ambos praticamente sem estudos regulares, ambos autodidatas, nascidos na periferia do Rio de Janeiro, ambos geniais nas obras que os consagraram.
Machado, filho de uma lavadeira e de um pintor de parede. Além da humilde condição social e econômica era também, para o seu transparente infortúnio (transposto posteriormente aos seus personagens), um homem de cor. Um mulato, e ainda por cima epilético. Reunia em si todos os predicados para uma possível marginalização. Contrariando a tudo isso, tornou-se o mais célebre escritor brasileiro em todos os gêneros a que se dedicou com absoluta perfeição e originalidade. Especialmente no romance, cuja narrativa obedeceu a um critério personalíssimo na inversão da ordem cronológica, bem como inovou o caráter do discurso no qual o narrador-personagem se torna um interlocutor para com o leitor. Qual explicação seria convincente para um homem dessa origem atingir a perfeição literária, além de falar, escrever e traduzir em outras línguas? Quem imaginaria, sobretudo naquela época, que um mulato de formação regular primária chegaria a fundar a Academia Brasileira de Letras? Autodidata, passou a vida em contato com livros. Lendo-os, o leitor adquiriu base mais que suficiente para tornar-se o exímio escritor. Notabilizando-se na prosa, seus primeiros romances têm a marca do romantismo; mas foi na fase madura da sua vida que Machado, revolucionou o processo narrativo com um estilo pessoal dado às Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), obra introdutória da prosa realista no Brasil. Poderia ter-se dedicado igualmente à poesia pelo que se comprova na obra poética em menos quantidade, mas sempre com o traço característico de um hábil cultor das palavras. O célebre soneto A Carolina é emblemático.
Muitas interrogações inquietam também aqueles que procuram desvendar o “mistério” que envolve a fascinante história de Agenor de Oliveira – O Cartola. Um homem de pouquíssima instrução formal surgiu aos poucos no cenário musical brasileiro, surpreendendo uma elite ou até mesmo aqueles menos requintados, mas respeitados no mundo da música.
Cartola, assim como Machado de Assis, surgiu já maduro e, por força das precárias condições de vida, passou longo tempo no ostracismo, quando então sobreviveu como lavador de carros e vigia noturno. Depois dessa fase, redescoberto por Stanislaw Ponte Preta, vieram-lhe o reconhecimento, o sucesso e a consagração. Mas tudo isso não silenciou os que ainda questionam o fato de um homem tão simplório produzir uma arte surpreendentemente bela, rica, única, definitiva e invejável. Quem se dispõe a além de ouvir, analisar não só a beleza melódica de suas composições, mas também, e principalmente, a riqueza lírica das suas construções poéticas, certamente ficará tão fascinado quanto incompreendidamente surpreso com o natural voo do gênio. Elegância frasal, paralelismo sintático e semântico, inversão da ordem natural, de que são exemplos versos memoráveis que muitos poetas, a exemplo de Drummond, gostariam de tê-los escritos.
Um hipérbato sonoramente poético:
“Bate outra vez com esperança o meu coração”.
Teria Camões soprado-lhe no ouvido? Não. Lirismo vem de Lira. E esta antes dos sonetos camonianos.
Onde e com quem estaria Cartola ao escrever com tanto purismo e requintado estilo estes versos imortais:
“Queixam-me as rosas, mas que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/O perfume que roubam de ti” ?
Certamente no céu de si mesmo em que o gênio era simplesmente Agenor e Cartola era algo de que pouco se dava conta a não ser para proteger-lhe a cabeça, sacrário da imaginação. Aquela imaginação do Inverno do Meu Tempo:
“Surge a alvorada/Folhas a voar/E o inverno do meu tempo começa a brotar”.
Brotou muito e lindamente, Cartola. E a ninguém importa qual seja o fenômeno, sobrenatural ou não. Nem mesmo os enigmas do gênio, pois a ele só interessava a arte. E esta genialmente perpetuou-se indiferente a qualquer mistério. Ambos, Machado e Cartola levaram consigo o genial talento de que o legado de suas obras dão provas.
Brasília, 4 de abril de 2011
Alguns traços de genialidade se confundem com fenômenos igualmente desconhecidos pela ciência. Quando alguém se manifesta potencialmente além da convencional “normalidade”, as hipóteses admitem até o sobrenatural. Sobretudo quando não apenas uma considerada precocidade, mas uma estranha origem torna inaceitável que determinado elemento se destaque por algum feito que o torne incomum.
Há nas artes em geral, especialmente na música e na literatura, alguns exemplos típicos até hoje não satisfatoriamente compreendidos pela humana curiosidade investigativa. Mozart aos oito anos de idade compôs sonatas para flauta e piano. Precocidade de gênio para muitos, fenômeno sobrenatural para outros. Descendência ou herança espiritual, diria outra corrente.
Atenho-me particularmente a dois exemplos que se assemelham na origem, na trajetória e na produção: Machado de Assis, na literatura e Cartola (Agenor de Oliveira), na música popular. Ambos de origem humilde, ambos praticamente sem estudos regulares, ambos autodidatas, nascidos na periferia do Rio de Janeiro, ambos geniais nas obras que os consagraram.
Machado, filho de uma lavadeira e de um pintor de parede. Além da humilde condição social e econômica era também, para o seu transparente infortúnio (transposto posteriormente aos seus personagens), um homem de cor. Um mulato, e ainda por cima epilético. Reunia em si todos os predicados para uma possível marginalização. Contrariando a tudo isso, tornou-se o mais célebre escritor brasileiro em todos os gêneros a que se dedicou com absoluta perfeição e originalidade. Especialmente no romance, cuja narrativa obedeceu a um critério personalíssimo na inversão da ordem cronológica, bem como inovou o caráter do discurso no qual o narrador-personagem se torna um interlocutor para com o leitor. Qual explicação seria convincente para um homem dessa origem atingir a perfeição literária, além de falar, escrever e traduzir em outras línguas? Quem imaginaria, sobretudo naquela época, que um mulato de formação regular primária chegaria a fundar a Academia Brasileira de Letras? Autodidata, passou a vida em contato com livros. Lendo-os, o leitor adquiriu base mais que suficiente para tornar-se o exímio escritor. Notabilizando-se na prosa, seus primeiros romances têm a marca do romantismo; mas foi na fase madura da sua vida que Machado, revolucionou o processo narrativo com um estilo pessoal dado às Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), obra introdutória da prosa realista no Brasil. Poderia ter-se dedicado igualmente à poesia pelo que se comprova na obra poética em menos quantidade, mas sempre com o traço característico de um hábil cultor das palavras. O célebre soneto A Carolina é emblemático.
Muitas interrogações inquietam também aqueles que procuram desvendar o “mistério” que envolve a fascinante história de Agenor de Oliveira – O Cartola. Um homem de pouquíssima instrução formal surgiu aos poucos no cenário musical brasileiro, surpreendendo uma elite ou até mesmo aqueles menos requintados, mas respeitados no mundo da música.
Cartola, assim como Machado de Assis, surgiu já maduro e, por força das precárias condições de vida, passou longo tempo no ostracismo, quando então sobreviveu como lavador de carros e vigia noturno. Depois dessa fase, redescoberto por Stanislaw Ponte Preta, vieram-lhe o reconhecimento, o sucesso e a consagração. Mas tudo isso não silenciou os que ainda questionam o fato de um homem tão simplório produzir uma arte surpreendentemente bela, rica, única, definitiva e invejável. Quem se dispõe a além de ouvir, analisar não só a beleza melódica de suas composições, mas também, e principalmente, a riqueza lírica das suas construções poéticas, certamente ficará tão fascinado quanto incompreendidamente surpreso com o natural voo do gênio. Elegância frasal, paralelismo sintático e semântico, inversão da ordem natural, de que são exemplos versos memoráveis que muitos poetas, a exemplo de Drummond, gostariam de tê-los escritos.
Um hipérbato sonoramente poético:
“Bate outra vez com esperança o meu coração”.
Teria Camões soprado-lhe no ouvido? Não. Lirismo vem de Lira. E esta antes dos sonetos camonianos.
Onde e com quem estaria Cartola ao escrever com tanto purismo e requintado estilo estes versos imortais:
“Queixam-me as rosas, mas que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/O perfume que roubam de ti” ?
Certamente no céu de si mesmo em que o gênio era simplesmente Agenor e Cartola era algo de que pouco se dava conta a não ser para proteger-lhe a cabeça, sacrário da imaginação. Aquela imaginação do Inverno do Meu Tempo:
“Surge a alvorada/Folhas a voar/E o inverno do meu tempo começa a brotar”.
Brotou muito e lindamente, Cartola. E a ninguém importa qual seja o fenômeno, sobrenatural ou não. Nem mesmo os enigmas do gênio, pois a ele só interessava a arte. E esta genialmente perpetuou-se indiferente a qualquer mistério. Ambos, Machado e Cartola levaram consigo o genial talento de que o legado de suas obras dão provas.
Brasília, 4 de abril de 2011