Sonho de vidro

Ruidoso resplendor toma conta dos meus passos enquanto sigo caminhando através da Avenida Borges de Medeiros. Andar na multidão muitas vezes acalma os olhos deslumbrados por sobre os meus escombros do tempo. As chamas enclausuradas das almas passam entre edifícios, e a grandeza do viaduto, oculta o corpo com sangue no coração batendo.

Procuro uma velha loja de discos usados para trocar musicalidade por sonho. Por isso as coisas velhas ganham significado de raras. Havia nos discos de vinil o grafismo exato do ídolo e a imagem era feita de luz sobre a capa. Nenhuma deformação desse ideal simbólico popular deveria ter mudado. Na imagem da capa havia introdução poética para todas as melodias. Comprar um vinil era chegar com ele numa festa. Objeto que carregava sempre um motivo de alegria. Sabia-se pelo embrulho que era vinil. Ficava melhor quando o papel era rasgado e estava ali o ídolo inteiro, com a promessa de tudo. Relembrar estas imagens e passear por elas numa loja de antiguidades é ocasião pacífica eivada de compadecimento sobre a luta diária. O mercado do CD desfez a magia do vinil também arrefeceu o mundo do cartaz. Começou a era do reducionismo e das minudências. A sutileza cega dos inquietos botões que nem sempre respondem as variações do gênero humano.

Na loja a morena de olhos verdes deixou cair um CD do lado indevido. Disse para brincar: o CD do pobre cai sempre do lado da música. Ela riu. Seu brilho despertou a vida entre objetos dessa amizade forjada na memória com gente que voltamos a reconhecer, porém, não sabemos de onde. Entre ruídos do trânsito infernal um sabiá canta ao longe. Ela procura um disco antigo da Elis. Tomamos um chope no Odeon e resolvemos ir de ônibus até Ipanema. Seus modos delicados buscavam nas imagens da rua a maré de sonho composta pela rapidez do ônibus. Estava cansada e dormiu em meu ombro durante o trajeto. Bonita criatura devorada pela fuga: disco, ídolo, homem, solidão, cansaço. Nós dois violando desertos no vazio dos espelhos. Estranhos procurando nutrir o desejo com beleza.

Sexo com uma mulher estranha tem algo de desafio invisível, como quem encontra o mesmo mundo, pela primeira vez. Noção de reflexo cujo desconhecimento parece decifrar sem precisar ler coisa alguma. Dormimos até a meia-noite. Retornamos para a Rua Oswaldo Aranha no último ônibus atrasado da linha. Desembarcamos na frente do hospital de Clínicas. Ficamos trocando o prazer recente pelo futuro doloroso dos hospitais. Amenizamos essa consciência do sofrimento determinado pela imortalidade do tempo de calor dos nossos corpos.

Falamos pouco: havia a mãe com câncer, o pai alcoólatra, o irmão desaparecido durante a ditadura militar. Fatos que o prazer ocultava como a luz da rua varre para longe o destino de quem passa. O outono na Redenção é esplêndido e caminhamos de mãos dadas, rindo como crianças livres da escola. Estávamos lavados como as ramas debaixo da noite num sonho de vidro depois da chuva. Dias depois passamos desconhecidos lado a lado pela mesma rua. A última vez que a vi, estava no Bar Ocidente entre beijos com outra morena, como ela, exceto pela boca cínica, comum nos homens. Ficou me fitando por cima dos ombros da companheira com olhos de memória e pedra.

Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 04/04/2011
Reeditado em 22/06/2020
Código do texto: T2889483
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