Minhas Músicas Inesquecíveis_1_O Ébrio

Romântico e sonhador de carteirinha, desde menino, é óbvio que sempre fui fascinado pela boa música que, igual a uma encantadora droga, tem o poder de me elevar a inefáveis e mágicas dimensões mentais. Nunca fui capaz de ouvir uma boa música – valsa, tango, bolero, chorinho, etc – e conversar ao mesmo tempo. Eu paro, fico autista da realidade, embarco na música e viajo. Para o passado ou para o futuro, mas viajo... Por isso, a lembrança dos  momentos marcantes da minha vida -  a infância e adolescência em São Luís do Maranhão, os anos vividos no Rio de Janeiro, na década de 60, os primeiros anos de funcionário do BB nas cidades interioranas do Maranhão, as paixões amorosas, as venturas e desventuras, etc., - me remete inevitavelmente à reprodução mental dos sons desse passado: as minhas músicas inesquecíveis.

“O Ébrio”, canção de autoria de Vicente Celestino e interpretada por ele mesmo, popularizada não só pelo seu tema – a história de um homem abandonado pela mulher que busca consolo nas garrafas – como pelo enorme sucesso de bilheteria que foi o filme de título homônimo, foi a primeira música que mexeu profundamente com as minhas raízes românticas. A música já estava sendo executada nas emissoras de rádio desde 1937, mas quando Gilda de Abreu, esposa do tenor Vicente Celestino, transformou o tema em filme, em 1946, protagonizado pelo próprio Vicente Celestino, o sucesso, tanto do filme quanto da música, foi estrondoso.

“O Ébrio” é um clássico do Cinema Brasileiro e foi um dos filmes mais populares do Brasil, ficando duas décadas em cartaz, sendo também o filme brasileiro do qual mais cópias se tiraram. Estima-se que, somente nos seus primeiros quatro anos, foi visto por 4 milhões de espectadores em um país que acabara de chegar a 50 milhões de habitantes. Em 1950, fui levado por minha mãe para assistir ao filme e, então, ouvi a canção “O Ébrio” pela primeira vez. E nunca mais pude deixá-la de ouvir sem molhar os olhos. Hoje, com certeza, de quase pura saudade daquele menininho de 7 anos, que chorou de pena do ébrio Gilberto Silva.

Mas, vamos à história narrada no filme. Gilberto Silva, um rico, brilhante e famoso médico no Rio de Janeiro, mas cercado de parentes interesseiros e sem escrúpulos, é loucamente apaixonado pela sua atraente esposa, Marieta, uma mulher frívola e de caráter duvidoso. Seu ambicioso primo José, fingindo louca paixão, consegue seduzir Marieta e convencê-la a fugir com ele para os Estados Unidos, levando dinheiro e jóias do casal. Gilberto fica arrasado com o abandono e traição da esposa, e passa muitos dias recolhido à sua casa, acometido do mais fundo desespero. Numa madrugada, vagando pelo centro do Rio de Janeiro, é única testemunha de uma tragédia: um homem é atropelado e esmagado por um carro em alta velocidade. Vendo que o homem não porta nenhum documento de identidade e que tem a sua mesma compleição física, Gilberto coloca nos seus bolsos os seus documentos pessoais e vai embora, nunca mais retornando ao seu lar. Os jornais no outro dia estampam a notícia da sua morte. Morre oficialmente o médico Gilberto Silva e nasce um ébrio que desperta admiração e simpatia pelas suas maneiras educadas e por uma sólida cultura que transparece do seu jeito filosoficamente amargo e descrente de interpretar o seu cotidiano de bêbado.

Anos depois, Gilberto, junto com seu inseparável amigo Pedro – o único que conhece a história da sua vida - está bebendo num sórdido bar da zona boêmia do Rio, quando é interpelado por uma jornalista que fazia uma reportagem sobre o drama do alcoolismo. Ela deseja saber por que ele bebe. “Eu bebo para esquecer”, responde Gilberto, e, ato contínuo, passa a mão num violão e começa a cantar a sua história. Todo o bar fica num mais profundo, respeitoso e emocionado silêncio; o português, dono do bar, enxuga uma furtiva lágrima dos olhos, enquanto a alma daquele bêbado escorre dolorosamente pelo violão... Gilberto termina a canção, recebe uma garrafa de cachaça como prêmio e vai bebê-la em outro compartimento do bar.

Mas, uma decadente mulher que se encontrava no bar, mendigando um prato de comida, quase enlouquece de assombro e desespero, pois reconhecera a voz do cantor! Não era possível, mas aquele homem, que cantara de maneira tão comovente ao violão, tinha a voz do seu falecido marido Gilberto e aquela história – ah, aquela história! – ela a conhecia muito bem. Era Marieta, pálida sombra da bela e elegante mulher de outrora, caída na sarjeta da pobreza e do abandono. Quando José, o vil amante por quem desprezara lar e marido, a trocara nos Estados Unidos pelo jogo, bebida e novas amantes, ela voltara para o Brasil, mas, repudiada por amigos e parentes, entregara-se à vida boêmia e à prostituição.

Quando Pedro, o inseparável amigo de Gilberto, volta para o salão principal tentando conseguir do português mais uma nova garrafa de cachaça, Marieta o pega pelo braço e lhe pergunta se o seu amigo não se chama Gilberto; Pedro se sobressalta, quer negar, desvencilhar-se dos braços da aflita mulher, mas o desespero estampado no rosto dela o comove. Confirma que o seu amigo se chama Gilberto e só então, Marieta revela a sua identidade: é a ex-esposa dele e precisa pedir-lhe perdão por todo o mal que lhe causou! Suplica a Pedro que convença Gilberto a recebê-la, ali mesmo, naquele bar. Pedro promete fazer isso, manda a mulher esperar e vai conversar com Gilberto.

Ainda não refeito da comoção que a espantosa revelação da mulher lhe causara, Pedro tem dificuldade para dizer claramente a Gilberto que Marieta, a sua ex-esposa e por cujo amor desgraçou toda a sua vida, está ali, do outro lado, e que deseja pedir-lhe perdão. Ora, Pedro é um bêbado romântico e amigo sincero de Gilberto; logo fantasiou na sua mente a reconciliação dos ex-cônjuges, Gilberto abandonando a garrafa e voltando a exercer a Medicina, enfim, voltando à vida. Por isso, tenta preparar o espírito do amigo para a tremenda entrevista, pois está convencido de que, ao reencontrar a amada, Gilberto abandonará a sarjeta física e moral em que caiu há muitos anos. Nervoso, com frases cautelosamente hipotéticas, não consegue se fazer entender completamente por Gilberto, mas arranca dele uma promessa: se um dia Marieta voltasse, ele a perdoaria.

Contente, esperançoso, Pedro corre para o outro do bar e traz Marieta pela mão. Ela se atira nos joelhos de Gilberto, sentado à mesa, e lhe suplica perdão. Gilberto, controlando a emoção e surpresa, olha para Marieta com infinita pena no olhar, acaricia os seus cabelos e diz :”Eu já te perdoei há muito tempo, Marieta”. A seguir, levanta-se e caminha para a saída do bar. Pedro pergunta aflito: “Gilberto, meu amigo, não vais levar a tua mulher?”, ao que Gilberto responde, triste, amargo e definitivo: “Eu disse que perdoava, mas não disse que me reconciliava”. Marieta soluça mais forte, Pedro baixa a cabeça desolado, e Gilberto sai para a noite fria e escura, enquanto estronda no salão do cinema o vozeirão do tenor cantor/ator Vicente Celestino, cantando “O Ébrio”.

Prometi para mim mesmo controlar a minha emoção ao contar essa história. Mas sou, como dizem minha mulher, meus filhos e meus netos, um irrecuperável “coração de manteiga”. Por isso, ao tempo em que espanto dos meus olhos estas teimosas lágrimas, convido você, meu amigo e minha amiga, para escutar a música “O Ébrio” no vozeirão do grande tenor/cantor Vicente Celestino, uma das grandes vozes na música brasileira do passado. Do tempo em que música era deleite para o espírito e não somente barulho para excitar os sentidos.



(Foi incluída nesta edição, a música "O Ébrio", de autoria de Vicente Celestino,  cantada pelo próprio Vicente Celestino. Contudo, devido à política editorial do Recanto das Letras, as músicas só podem ser reproduzidas no Site do Escritor; caso você esteja visualizando esta página apenas no Recanto das Letras e queira ouvir a música incluída, use o link de controle abaixo para ser redirecionado ao Site do Escritor)    

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Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 03/04/2011
Reeditado em 01/08/2011
Código do texto: T2886745
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