Sábado Oneroso
Tem dia que uma amnésia cai bem, quando um derrame ou uma parada cardíaca não chegam. Como a amnésia também soa impossível, o jeito, pelo jeito, parece ser beber e esquecer a porra toda. Se por um acaso eu escrevi alguma crônica falando sobre o meu novo emprego e tudo pareceu fácil demais, esqueça.
A sexta-feira - invariavelmente kármica na minha existência - foi um dia de excepcional NADA VAI DAR CERTO e eu, depois do expediente, fiz questão de encontrar com o Carnero e nós acabamos exagerando um pouco na cerveja. Voltei pra casa vendo as outras casas tremendo a cada passo tortuoso que eu dava e acabei capotando pouco depois de escrever uma poesia que agora esqueci o nome. Isso sempre acontece. Não de sempre escrever poesia depois de encher a cara, mas de esquecer a grande maioria dos títulos do que eu escrevo.
Eu meio que acordei com a minha mãe mandando meu irmão ir dormir e ele falando que não tinha sono. Pelo chilique dela, calculei que deveria ser umas quatro ou cinco da manhã. A semana inteira enquanto eu acordava às seis da manhã pra ir me foder, ele estava indo pra cama.
"Quero ver vagabundo dormindo até quatro da tarde", ela grasnou do quarto dela.
Isso ficou na minha cabeça e quando eu acordei, com a casa demasiadamente silenciosa, pensei: "caralho, devem ser umas quatro da tarde e eu perdi o meu dia de folga. Bosta."
Meu irmão roncava na parte de cima do beliche. Levantei e fui acometido por luzes vermelhas e por pontadas na cabeça. Lembrei das cervejas da noite anterior. Me arrastei até o banheiro e bebi água da pia (que vem da caixa d'água que é cheia de musgo e de ovos de mosquitos da dengue nas bordas) e comi alguma coisa muito insossa. Liguei o computador. Fiquei um pouco feliz ao ver que eram apenas duas da tarde.
Não tão feliz, por que meu desodorante tinha acabado. Coloquei um short sem vergonha por cima da samba canção e separei uma grana pra também carregar o Bilhete Único numa loja de materiais de construção que fica em frente a farmácia que fica a apenas cinqüenta metros de casa.
Esqueci o Bilhete e não tinha o desodorante que uso.
Voltei, coloquei o tênis, peguei o skate e fui até a outra farmácia, a uns seiscentos metros de casa. Lá tinha, e foi caro. Também carreguei o Bilhete. "E é tão fácil matar uma onça", pensei comigo mesmo.
Voltei e fiquei com preguiça de viver. Preguiça de gente. Preguiça de gastar meu primeiro meio-salário.
Mas lá pelas quatro da tarde, saí de casa pra me encontrar com o Carnero na Vila Matilde e, posteriormente, encontrar o Marcelo (após uma mudança abrupta de planos) no Anhangabaú.
O plano consistia em ir na Galeria do Rock VER shapes e/ou tênis e depois ir ALMOÇAR.
Na segunda loja que entramos, pagamos o valor dobrado que costumamos pagar em shapes nacionais, em um shape gringo, cada um. Doeu um pouco pagar tudo aquilo. Mas costuma doer bem mais pagar setenta reais em uma coisa que é feita pra durar um tempo razoável e que quebra no segundo dia de utilização. Foi por isto que arriscamos passar o resto do mês comendo pãozinho de queijo do Parque Dom Pedro e pagar um pouco mais em algo que, aparentemente, tem mais qualidade.
Encontramos com o Marcelo no Anhangabaú e fomos até a Sé, colocando o papo em dia; falando mal de todo mundo que consegue se dar bem na vida sem fazer muito esforço e todas essas coisas que nos afligem dolorosamente.
E a fome corroendo nossas entranhas de forma inclemente.
Chegamos na churrascaria. Fechada.
O restaurante da esquina que servia uma comida ótima também estava pronto pra fechar. O jeito foi pegar um ônibus (o quarto do dia) e subir até a Brigadeiro e tentar comer em um restaurante que eu almocei algumas vezes.
"E aquela mina lá do teatro, rapaz?", perguntou o Marcelo.
"Qual?", também perguntei. Foram várias, cara!
"Aquela que a mãe dela colava também e tal...", esclareceu.
"Ah, eu não te falei que a filha da puta me mandou uma mensagem falando que tava com saudade e no minuto seguinte eu a vejo andando de mãos dadas com um cara na minha frente?", respondi, sempre feliz da vida.
"Hahaha pode crer", concordou, "e aquela outra lá?"
"Qual?"
"A Madalena..."
"Aquela que morava sozinha e que me mandou pastar?", eu quis saber, pois era mais de uma Madalena.
"Não, aquela outra do teatro, também, pô!".
"Ah", lembrei, "é a Annabel, velho..."
Neste momento, eu devo ter dado um sorriso do tamanho do mundo todindinho. O Carnero reparou no meu sorriso e soltou um muxoxo, balançando a cabeça com desgosto.
"Ah, velho, continuo apaixonado pela filha da puta", respondi.
"Mas nunca mais rolou um rolezinho, rapaz?"
"Nem...", respondi meio chateado, "mas qualquer madrugada de porre dessas ela me liga, como sempre".
"É foda essas porras..."
"Éééé..."
Nisso, descemos do ônibus. Chovia. Entramos no restaurante e eu pedi um bife a parmeggiana que é do tamanho do meu pé. E eu calço quarenta. Tudo bem, não precisa agradecer por essa informação útil pra sua vida que eu acabei de dar de graça.
Pegamos uma mesa de quatro lugares e eu sentei sozinho do meu lado, de frente pros dois marmanjos.
Na mesa que ficava atrás deles, de frente pra mim, sentaram duas mulheres. Duas coroas. Uma era sem graça e que o Carnero obstruia a minha visão e a outra tinha olhos azuis e narigão. Apesar dos dois detalhes que me atraem, o restante da fuça não me convenceu. Começamos a trocar olhares. Olhei pra trás pra ver se não estava sendo confundido, como sempre, e não havia ninguém. Era mesmo pra mim.
A comida chegou e todos atacamos, esfomeados.
Ela bebia cerveja e olhava pra minha cara.
Ela roía uma asinha de frango e olhava pra minha cara.
Dado momento, reparei que ela sentava meio largada, com as pernas meio abertas. Mirei bem no meio das coxas e quase engasguei.
"Mano, se liga no tamanho do pacote da filha da puta aí de trás", avisei os meninos.
A coisa parecia boa demais pra ser verdade. Inchada, rasgada bem no meio como há de ser, do jeito que eu e o diabo gostamos!
Mas não aconteceu nada, como há de ser. Levantamos, pagamos a conta e demos o fora dali.
Começou a chover e a bomboniere que vende Melona pela metade do preço estava fechada. Fiquei chateado.
No meio do caminho a chuva apertou e paramos debaixo de uma cobertura de uma banca de jornal e eu comecei a pôr o Marcelo a par da minha última relação sexual. Tão deprimente! Tão traumatizante! "Abandonando Vícios", é o nome do título.
Trombamos a Dami e a Bia no meio do caminho, que nem no dia anterior. Trocamos abracinhos. Bia olhou pro Marcelo e falou "Ei, você é da minha sala!". Mundo pequeno. Só que aí elas tiveram que lembrar de uma fase da minha vida.
"Nossa", começou a Dami, "incrível como eu sempre encontro o Rafa aqui."
"É", falei, "e se a gente marcar não vai dar certo; sempre assim."
"E eu sempre falava pra Bia", continuou a querida Dami, "'Ai, Bia, com quem será que o Rafa estará hoje? É sempre uma menina diferente por semana'".
Isso doeu. Foi uma fase boa por um lado e incômoda por outro. Eu sempre me sinto vazio, incompleto, insatisfeito; parece que sempre falta alguma coisa em qualquer coisa que eu me proponho a fazer. É por isso que eu tenho vontade de tatuar DONT TRY nos dedos.
"Depois que o HSBC fechou eu nunca mais vi você com ninguém, Cat", Dami resumiu minha sina.
"É", respondi, "não só ele como o departamento lá do Céu que me dava algum tipo de sorte com alguma coisa."
Quando o assunto acabou, elas seguiram o caminho delas e nós seguimos o nosso. O caminho da derrota e da solidão - sob garoa, desta vez.
Descolamos uma mesa logo na entrada do Vitrine. Enquanto muita gente que freqüentou o lugar passou a maldizê-lo depois que os remanescentes emos fizeram de lá um point e, enquanto os próprios emos decidir dar a bunda em outro lugar, o lugar passou a ficar agradável - desde que você esteja em uma mesa longe das caixas de som (o que era nosso caso).
Eu sentei de frente pro lugar que faziam as pizzas. Do meu lado direito tinha um casal. O carinha com alargador, cabelo desgrenhado e barba - só pra variar um pouco. A belezinha dele tinha cara de modelo e era muito, mas muito gostosa - com um vestido branco cruzando as pernas e deixando à mostra um pedaço da coxa com celulite. Ah!
Imediatamente na minha frente, perto da parede de vidro que isolava o forno da galera, havia uma outra, com vestido preto que era um completo tesão. Com os pés tatuados... Torno-me um completo podólatra quando o objeto de lascívia em questão possui tatuagem. É foda.
As cervejas chegavam e a conversa fluía. Conversa de macho, manja? Academia, filmes, livros e xoxotas.
Passou um grupinho de raparigas de shortinho socado no rabo e de vestidinhos curtíssimos que embalavam suas bundinhas murchas à vácuo indo em direção à porta. Uma delas olhou pra minha cara indo. Depois ela passou voltando e olhou. Depois, voltou de novo e me encarou infinito.
Um dos rapazes que trabalha no local e que sempre dá uma esticada na nossa mesa pra dar um pouco de risada passou a informação de que a tal guria que me olhou estava chorando pouco antes da gente chegar.
"Por quê?", perguntei.
"Ah, sei lá", ele respondeu, "ela tava dando a bunda prum carinha lá no banheiro e eu tive que ir lá dar um jeito e acho que ela ficou chateada por não ter gozado."
Muito engraçado.
No mesmo momento ela entrou e encostou do lado do Carnero.
"É sua essa cerveja?", ela perguntou.
"É", ele respondeu.
Ela pegou o copo e deu uma talagada. Depôs o copo na mesa e olhou pra minha cara de desdém.
"Filho", falei, "ela acabou de chupar uma rola e bebeu do seu copo HAHAHAHA".
Ele mostrou o dedo médio pra mim e girou o copo.
Olhei pro lado de fora e ela estava com uma amiga muito gostosinha falando "aquele ali é bonitinho" e apontando adivinha pra quem?
Um minuto depois ela entrou acompanhada da garota e com um amigo babaca e gente boa de camiseta xadrez. Ele encostou do meu lado e falou que ela queria o meu MSN.
"Aquela ali", apontei pra amiguinha delicinha que ia em direção ao banheiro.
"Não, aquela ali", ele respondeu e apontou pra metelona de banheiro.
"Ah", respondi e comecei a anotar o e-mail no celular dela.
Ela veio ter conosco. E ele saiu. Ela encostou do meu lado e me deu um beijo no rosto. Perguntou o meu nome. Perguntou se eu costumava entrar no MSN. Chegou uma cerveja e eu enchi o copo que tinha acabado de encher. Tornei a enchê-lo. O nosso amigo trabalhador da casa perguntou se poderia trazer mais uma cadeira e deu risada.
Fiquei embotado.
Ela ficou ao meu lado com uma saia curtíssima. Tinha belas pernas. Belas coxas de mulata. Uma gostosa. Passou o dedo na minha tatuagem e falou "gostei". Perguntou a minha idade. Devolvi a pergunta. Ela respondeu. Oito anos mais nova do que eu.
Esvaziei o copo.
"Então", ela falou de forma reticente, esperando uma chupada na buceta, acho.
"Então que a gente se fala mais tarde, se você entrar", eu respondi.
"Nossa, e eu ia falar outra coisa", e continuou reticente, talvez esperando um "por quê?".
Fiquei quieto. Ela me deu um beijo no rosto e saiu.
Chegou outra cerveja e todos brindamos ao azar que tanto nos brinda com sua constante e insistente presença. Continuamos conversando sobre tudo e sobre nada. Principalmente sobre o véu invisível (pra gente) que obstrui a visão de mulheres que nos atraem. Mulheres que, inclusive, entravam e saiam a todo minuto.
Na hora de ir embora, depois de ficarmos alguns reais mais pobres, começou a chover.
Fiquei desiludido por não ter podido pedir em casamento uma coisinha linda com os lábios besuntados de batom vermelho vivo. Fica pra próxima (vida).
O ônibus não queria passar e a chuva continuava. Resolvemos, eu e o Carnero, dar uma mijada pra não passar raiva e ter que descer no meio do caminho pra aliviar a bexiga.
Coloquei o troço pra fora e mirei a privada. Fiquei lendo uma coisa rabiscada de canetão nas paredes laterais do reservado.
"Eu já comi a Bernadete (1 membro)".
"Irmão", falei, "entra ali e lê o que tá escrito na parede do lado direito."
Ele entrou e leu. Fizemos caras de Iiii e saímos.
Decidimos subir a Augusta. E o Marcelo soltou.
"Mano, você viu o que tava escrito no reservado do meio? 'Comi a Bernadete' e num sei o quê..."
"É, eu vi", respondi, "é o nome da minazinha lá que veio pedir meu MSN..."
No Metrô (como não conseguimos pegar ônibus), mais derrota.
Eles desceram e eu fiquei.
Cheguei no terminal de ônibus da estação que desci e me deparei com um ônibus que é quase tão mais raro do que um Eclipse Solar e que me deixa na porta de casa. Uma coisa justificando a outra.
Sentei num banco da parte da frente e fiquei entretido numa pomba que se divertia numa poça de água escura da chuva no chão de pedra portuguesa. Eu olhava e ria. O bicho abria as asas e agachava e depois ficava bicando o peito. Depois, como se fosse uma fofoqueira mal-comida querendo ouvir as trepadas do casal do andar de baixo, o bicho debruçava a lateral da cabeça na poça e ficava com uma asa aberta apontada pra cima. O cobrador, curioso, afastou uma bandeira de time que ficava atrás dele e quase quebra o pescoço pra olhar o que eu tanto olhava. Ele olhou. E depois olhou pra minha cara. Deve ter me achado louco.
Bonito é ver jogo de futebol, né?
Fiquei viajando ouvindo She Wants Revenge. She Wants Revenge e a paisagem mudando através de gotas orvalhando nos vidros dos ônibus é uma conjunção poética que, Cristo!, me faz tão bem! Eu até pedi a Deus o seguinte:
"Deus, querido, se Você existe, manda pa eu uma mulher que seja fanática por esta banda, sim?"
Tá aí mais uma coisa que ele vai fazer questão de não me dar.
Dei sinal e levantei.
O cobrador continuou olhando pra minha cara enquanto eu passava a catraca. Eu não entendi o porquê do olhar.
Desci do ônibus e vi uma coisa bem esquisita: um cachorro com as patas dianteiras apoiadas num portão fazendo movimentos de meteção. Do lado de dentro, havia uma cadela branca, encostada de lado no portão. A cadela parada de lado e ele mandando ver no vento.
Cheguei em casa e me deparei com duas caixas de pizza sobre a mesa. Duas pizzas que me dão o total de dezesseis pedaços. Sobraram dois. Pizzas de uma determinada coisa que eu não como e que até as ratazanas que devem ouvir minhas imprecações sabem.
Não aconteceu mais nada, depois.
Nota: dei Ctrl+S e nomeei (?) este texto como "BBB".
03/04/2011 - 02h48m