EMIR SADER E O ANO DE 1964
Por isso tem que ressoar sempre nos ouvidos de todos a pergunta: Onde você estava no golpe de 1964? (Emir Sader)
O meu amigo Wagner da Silva Ribeiro tem me enviado vez por outra um texto de Emir Sader. Quem é Emir Sader?
“Emir Sader nasceu em São Paulo, no ano de 1943. Formou-se em Filosofia na Universidade de São Paulo. Fez Mestrado em Filosofia Política e Doutorado em Ciência Política, ambos na Universidade de São Paulo. Na mesma universidade, trabalhou como professor, primeiro de filosofia, depois de ciência política. Foi, ainda, pesquisador do Centro de Estudos Sócio Econômicos da Universidade do Chile, professor de Política na UNICAMP e coordenador do Curso de Especialização em Políticas Sociais na Faculdade de Serviço Social da UERJ. Atualmente dirige o Laboratório de Políticas Públicas na UERJ, onde é professor de sociologia”.
Apresentado está.
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Emir, quero responder à sua importante questão. E também preciso me perguntar onde eu estava em 1964. Algum exercício de recordar se faz necessário. Em 1964 estava em Aracaju, capital do Estado de Sergipe, a esta época um estado espezinhado e considerado atrasado e provinciano. Ainda sentia o gosto da minha festa de 15 anos, pois o Golpe Militar aconteceu no dia 31 de março e eu só completaria os 16 anos de idade no mês de julho. Era uma ginasiana no Colégio Atheneu. Ah, se todos pudessem saber o que era uma jovem de 15 anos em Aracaju, cidade-família onde todos se conheciam e viviam dias de muita alegria e inocência.
De repente o barulho, o comentário pela Rua João Pessoa, os mais velhos criticando, problemas no Palácio do Governo, boatos de armas na rua, de revolução, de prisões. Crianças e adolescentes não deviam envolver-se “nestas coisas”. Mas sentiam o clima de desassossego. Pronto, virei “filhote de ditadura” sem nem saber do que mesmo se tratava. A seguir, de uma sucinta vista d’olhos, a breve cronologia de 64 a 85:
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Em 31 de março de 1964 um golpe político-militar depõe João Goulart
da Presidência da República. O Ato Institucional nº 1 suspende os direitos políticos de centenas de pessoas. O general Castelo Branco toma posse como presidente. Em 1965 extinguem-se os partidos políticos existentes e institui-se o bipartidarismo, com a Aliança Renovadora Nacional (Arena), de apoio ao governo, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), de oposição. (Arena), de apoio ao governo, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), de oposição.No ano de 1666, são suspensas as eleições diretas para cargos executivos. Vários deputados federais são cassados. O Congresso, ao protestar, é posto em recesso por um mês. Em 1967, o marechal Costa e Silva toma posse na Presidência da República. Líderes da oposição organizam uma frente ampla contra o governo militar.
Em 1968, a oposição é reprimida com violência. O Ato Institucional nº 5 marca o endurecimento do regime, agora abertamente ditatorial.
Em 1969, Costa e Silva é afastado por motivo de saúde. Uma junta dos ministros militares assume provisoriamente o governo. A alta oficialidade das Forças Armadas escolhe o general Garrastazu Médici para presidente.
No ano de 70, a oposição ao regime se torna mais intensa, com guerrilhas na cidade e no campo. Os militares reagem com violência. Nos "porões" da ditadura, passam a ocorrer mortes, desparecimentos e torturas.
De 71 a 73, a repressão vence a guerrilha. O país experimenta um momento de desenvolvimento econômico que ficou conhecido como "o milagre brasileiro". A economia cresceu, mas em detrimento da preservação ambiental e com o aumento da dependência do petróleo importado e do capital externo.O general Ernesto Geisel assume a presidência em 1974, enquanto o MDB conquista uma vitória expressiva nas eleições legislativas.
No período de 75 a 76, Geisel representa a ala moderada dos militares e tenta promover uma abertura, enfrentando seus próprios pares. O crescimento econômico se mantém, mas já há sinais de crise, proveniente, sobretudo do aumento do preço petróleo e da dívida externa.
Corria o ano de 77 quando a sociedade civil passa a reivindicar efetivamente a recuperação dos direitos democráticos. Em 1978 acontece o fim do AI-5. A abertura política progride lentamente. O general João Batista Figueiredo assume a presidência no ano de 1979. Aprovada a lei da anistia. Centenas de exilados retornam ao país. O pluripartidarismo é restabelecido.
Em 1980 agrava-se a crise econômica. Aumentam as greves e as manifestações de protesto. O PDS substitui a Arena e o PMDB o MDB. Fundam-se o PDT e o PTB. Na altura do ano de 1981 continuam os conflitos internos entre a ala radical e a ala moderada das forças armadas. Figueiredo tem um infarto e o poder fica nas mãos de um civil, Aureliano Chaves, durante três meses.Nos anos de 82 e 83 acontecem as eleições diretas para governadores e prefeitos, com vitória da oposição em estados como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. O PT obtém seu registro na Justiça Eleitoral. Sem condições de pagar aos credores externos, o Brasil vai ao FMI.
Chega o ano de 1985 e, indiretamente, o civil e oposicionista Tancredo Neves é eleito presidente da República.
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Quanto ao que vivi, de 1966 a 1968, estudante do Curso Clássico de Humanidades, no Colégio Atheneu, eu transitava entre os estudantes vanguardistas, rebeldes e revolucionários e até os fantasiados de hippie. Muitos desses, liderando e participando de passeatas e outros movimentos, foram procurados, encontrados, presos e até torturados. A repressão era tanta que temíamos abrir a boca para emitir alguma opinião em sala de aula, pois, vinham informações, umas verdadeiras e outras que viraram folclore. Por exemplo, dizia-se haver em cada sala de aula um espião e, caso disséssemos algo suspeito, seríamos imediatamente denunciados e, em seguida presos na “colina”. Assim era chamado o quartel do Exército em Aracaju por estar situado em uma parte alta da cidade. Foi um período difícil para a sociedade sergipana de família burguesa e tradicionalista. Inconcebível pensar no fato de serem seus filhos “tão bem criados” se transformarem em “comunistas”.
No ano de 1969 ingressei no Curso de Letras da Universidade Federal de Sergipe e lá estavam alguns daqueles líderes que conseguiram escapar da vigilância dupla, dos líderes da ditadura e da liderança dos pais.
Continuavam suas lutas e a música enchia o ambiente. Lá se foram muitos músicos enxotados do Brasil. Aliás, nem apenas músicos, mas qualquer um que formulasse argumentos numa lógica contrária ao pensamento militar vigente.
A respeito de quando eu mesma senti na pele a mão da ditadura, já escrevi uma página, mas a relembro aqui. Passeava pela então Rua João Pessoa e avistei uma senhora de idade aproximada dos cinquenta e alguns anos atravessando a via. Movimentava-se lentamente em virtude de seu corpo pesado. Um jovem pedalando uma bicicleta aproximou-se perigosamente dela e tentava de todo jeito desviar-se ou parar o veículo de duas rodas. Penso que de tão velha, a bicicleta não obedecia ao seu comando e veio a tocar na senhora. Assustada, mais devagar do que antes, tentava sair dali. Houve uma aglomeração e um pequeno tumulto de indignação se formou contra o ciclista. Da porta da galeria de onde eu observava as cenas que narro, comentei que aquilo tudo era desnecessário e, tão somente por ser aquela uma senhora de aparentes sinais de riqueza _ ao contrário do rapaz _ as pessoas agiam daquela forma. Neste exato instante uma mão larga, firme como se fosse uma garra de aço, abarcou meu braço magricela. Quando me voltei para olhar de que se tratava, me deparei com um senhor que me dizia: “Diga mais uma palavra e eu pessoalmente a levo para o quartel onde ficará detida”. Até se eu quisesse falar, não poderia. Não imaginei jamais uma coisa assim me acontecer. Finalmente ele largou o meu braço e sempre me olhando de cara ameaçadora. Depois descobri que era um militar, pai de uma amiga e colega que até hoje acha muita graça quando a relembro do ocorrido.
Durante os quatro anos de universidade, de 1969 a 1972, devorei línguas, culturas, literatura, filosofia. Participava de tudo para estar no meio da turma e fui considerada ativista. Sabia poemas de cor e declamava-os no pátio da faculdade, pelas calçadas do centro de Aracaju e, como se achasse pouco, em tudo me envolvia e opinava, crítica e irreverente.
Em 1976, funcionária pública, professora concursada, continuei minhas atividades educacionais já iniciadas anteriormente, quando ainda universitária, em regime de contrato. E daí em diante, dei de cara com a ditadura. Aconteciam as restrições, as recomendações insistentes, a censura e o temor. Entrementes, teimosa que era, lia, devorava O Pasquim. Além disto, língua solta, dizia o que bem queria nas salas de aula, especialmente ensinando literatura. Caprichava na leitura dos poetas revolucionários e inflamava os estudantes. Acredito que os espiões não eram lá estas coisas, pois não sei como escapei da prisão. Ainda de quebra adorava as músicas do Raul Seixas e tudo o mais que fosse do gênero.
Lembro-me de uma oportunidade em que tive que submeter à censura um texto que elaborei em homenagem a Santos Dumont, diálogo simples destinado à dramatização por estudantes pré-adolescentes.
Quis muito fugir de Aracaju para centros maiores e fora do país. Meu objetivo era viajar pra a América do Norte onde pretendia aperfeiçoar o uso da língua inglesa, mas cadê que, principalmente o meu pai, não admitia. Passear, sim. Morar, jamais. Naquela época, mesmo formada e empregada, o pai era a lei. Fiquei e em 1978 me casei. Amarrada docemente ao casamento e aos filhos que se seguiram, vi acontecer o fim do AI-5.
Devo dizer que, estive, Emir, em tudo por aí, vendo, ouvindo e lendo, acompanhando todo tipo de violência que acontecia no país, especialmente nos estados mais avançados.
Ainda acrescento que, graças a Deus, não fiquei ditadora. Parece que o efeito foi inverso, pois passei a gostar mais ainda da Liberdade e ensiná-la a estudantes, amigos e filhos. Talvez, quem sabe, seja uma marca dizer nestas linhas que coisa alguma tenho conta fardados, pois são pessoas, seres humanos e o sistema é que transforma parte desse batalhão em quase tanques de guerra portadores de cabeça, tronco e membros.
REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS
http://histfacil.blogspot.com/2011/01/quadro-cronologico-da-ditadura-militar.html
http://www.aomestre.com.br/col/ems/b_emir.htm