Terminou a ligação
A rapidez da comunicação humana tirou a certeza gradual das coisas. Aquela garantia de que estamos sólidos, firmes, bem como não seremos aniquilados rapidamente pela ausência da comunicação imediata. O telefone só existe como essencial porque existe o enfarte. Vejam a coitada da Jesuína de Jesus, ganhou prêmio milionário pelo telefone. Quase teve um ataque. Ficou contente como Etelvina no samba. Sonhou a nossa vida reformulada, resumiu tudo num suspiro de libertação. Tudo engano entre “sem milhões” e “cem milhões” da promoção.
Neste final de semana esquecerei o telefone nalgum lugar previamente estabelecido, que é a melhor maneira de respeitar suas conveniências. Ficará talvez sobre a mesa da varanda como se recebesse alguém para o jantar.
- Com quem você vai jantar esta noite?
- Com o telefone. Um jantar romântico.
Logo ganharei o melhor rumo naturalmente para um lugar fora de área para evitar a culpa. Um homem sem telefone nos dias de hoje é um ser mal visto. Desconectado.
A dizer que antes do telefone minha vida era calma, ensolarada, mansa. Os contatos eficientes, Barbalho Valdomiro morador da Rua Sete, número 1000. Ali cravado e o mesmo sem volteios. Por sinal cobrança nunca deixou de vir por causa do telefone. Jesuína também era outra. Tranqüila sempre com a janta pronta. Havia felicidade antes das ondas sonoras.
Hoje o telefone serve de ponto. Esse recurso cênico remotíssimo no telefone é pura escravidão. “Barbalho, você está no Bar Mariano?” Lembre-se: “Após as vinte e duas horas fique na rua”, além das deduções sonoras vizinhas, concomitantes, no único lugar de anarquia e diversão que utilizo para viver. Perde-se o homem para o homem localizável. Disponível demais, nu, seco de mistérios, robótico. Nada mais ridiculamente humano do que não possuir mistérios, esses que envaidecem nossa magnífica solidão dando-nos a sensação de trabalho interior próprio bem elaborado.
Sobra a graça cínica da geração dos botõezinhos. Você, Barbalho, é um perfeito retrógrado, velho, inepto incapaz de acompanhar a evolução tecnológica. Acrescente a evolução tão rápida e constante e temos a imediata certeza de que ninguém acompanha tal evolução. Volúvel e materializável. Ah, que maravilha se sentir apenas como alguém que está vivo, quando surge longe o ônibus largando gente na cidadezinha das trinta casas para mais enternecida surpresa.
Claro que avisar é importante. O problema é que essa surpresa acabou trocada por outra surpreendente: a conta. Ou apenas um espaçozinho para se dizer: “oi”. Pronto, terminou a ligação.