O Natal de ontem e de hoje
A Brasília dos primeiros tempos ainda não pertencia a ninguém e por isso mesmo era de todos. Depois de um ano inteiro de dura labuta, quando o dia-a-dia era mais um sacro-ofício do que um sacrifício, todos se davam conta de que era chegado o Natal. Não havia muito essa estória de papai noel, falava-se apenas do nascimento de Jesus. E dar presentes ainda não era uma instituição, mas algo espontâneo. Não havia muito tempo para preparativos e de repente estávamos vivendo o clima de Natal. Nossos sentidos ficavam mais aguçados. Eu ainda era criança mas jamais me esquecerei daquelas pessoas simples, que acreditavam. Em qualquer coisa, sobretudo na palavra empenhada. Acreditaram até mesmo em Brasília ! A lisura era lugar-comum. Vindo da cidade grande, foi com eles que tomei lições de persistencia e de fé. Aprendi a andar descalço, suportar o frio e as vicissitudes da vida com humildade. A tomar banho no brejinho da UnB, na Água Mineral e na Lagoa do Jaburu, a catar frutas no mato e a conhecer e respeitar o cerrado e seus habitantes.
No Natal, as pessoas paravam por um momento, para se mirarem no espelho da meditação. Os corações se abriam, os rostos se iluminavam. A missa do galo na Vila Planalto reunia uma multidão emocionada que se cumprimentava com mãos rudes e se olhava em profundidade com olhos serenos. Depois haviam as ceias, as crianças perambulando de casa em casa, a tudo conferindo. Nas mesas, macaxeira, farofa, risoto e, com um pouco de sorte, um frango caipira ou um leitão. Vinho sangue de boi ou cachaça mesmo. Para as crianças, limonada. O dia 25 amanhecia com o alarido da gurizada, os adultos ainda dormindo. Os menos favorecidos ganhavam uma bola de plástico cascuda que só durava um dia, ou uma boneca sem roupa que em breve seria esquartejada. Os de mais posses, roupas novas, um calçado ou até mesmo uma bicicleta. Alguns nada recebiam, mas não havia choro nem tristeza. Os presentes de cada um seriam compartilhados por todos no decorrer do ano seguinte. A vida era uma esperança permanente.
O Natal no Planalto Central era feito de lama, terra vermelha e árvores secas do cerrado decoradas com algodão, purpurina e o que mais se encontrasse no mato. Tudo isto está ainda tão vivo na memória e ao mesmo tempo tão distante ... Seria bom que os que habitam a Brasília de hoje soubessem que este solo sagrado, pela ambição profanado, foi regado com o suor de gente simples e verdadeira, que aqui passou humildes natais, mas com muita dignidade.
Brasília, 17 de dezembro de 2002