Mulher Não Gosta de Apanhar
Meu cérebro não assimilava muito bem o que acabara de ouvir. Tentei, juro que tentei. Meu semblante empalideceu? Ou ruborizou? Meus rins trabalharam como um exército, tive vontade de urinar. Tive também cólicas, espasmos faciais, contrações. Enfim, meu corpo se expressou.
Dei conta que esta estrutura física que me transporta para cima e para baixo tem linguagem própria, aquém da minha vontade. Era tudo involuntário, repetidamente involuntário. No exato instante do acontecido não usei palavras, não pensei. Meu corpo, sozinho, se expressou por mim. Passei a conceber essa inteligência corporal, dado o êxito com que meu corpo transmitiu o recado.
O fato era que a situação foi constrangedora, pra não dizer vergonhosa: puxei o assento, recostei minha lombar e passei a escutar. Naquele instante fui todo ouvidos. Profissionais de saúde, das mais diversas profissões, falavam com exaustão. Por certo que o horário era impróprio, seriam apenas seis horas da manhã de um sábado, mas não justificou. Estava eu a entrar de plantão, as pessoas a sair. Quando dei por mim o assunto veio à tona: violência contra mulher. Foi um basta. Foi aí que meu corpo ganhou voz. O consenso era unânime. Todas as pessoas que estavam a minha volta, sujeitos de um processo de transformação, protagonistas do SUS, pessoas com o aparato para solucionar os problemas que a sociedade submerge, simplesmente todas! concluíam que há mulheres que gostam de apanhar. E mais, havia pessoas, desse mesmo ciclo, concordantes de que as mulheres, na maioria das vezes, eram merecedoras da violência que sofriam. “Merecem uns tapas!”
A violência de gênero, decorrente de relações entre homens e mulheres, é um problema social, atingindo um grande contingente populacional. Muitas vezes é invisível e absurdamente aceitável, é desproporcional e humilhante, é desrespeitosa. Basta! Ainda vivemos em uma sociedade machista e cheia de (pré)conceitos, onde a mulher é tida como um produto subordinado ao homem, seu dono. A mulher ainda é como se fosse uma mercadoria. Vem de berço, transgride nosso processo de formação, da nossa estrutura educacional. A mídia dominante, principalmente a televisiva, exalta figuras como o goleiro Bruno (“quem nunca saiu no tapa com uma mulher?”) e o atacante Adriano. Emudece sob a temática, não traz à tona, não discute.
Não que a culpa esteja alicerçada na mídia, a culpa é de um contexto geral há séculos, é um problema social, de educação, de saúde, de habitação, de cultura, de renda.
Temos uma maneira de como nos enxergamos no mundo, de como nos inserimos, e uma preocupação excessiva de como o outro nos vê. Precisa-se ser, e para ser há que se mostrar, há que ter. A necessidade do homem se impor é operante, urge se fazer necessária. O homem precisa, desde o nascimento, ser “macho”. Seu pênis é o seu troféu, necessita ser grande, precisa ser mostrado. Tendo essa “macheza” ancorada no seu esteriótipo ele se sente no direito de governar, de comandar. Se sente na vagância de sobrepor seu poder. Ser homem, ou ser masculino, vai além, não é humilhar, não é violentar.
A mulher, pelo contrário, é vista como indefesa, cuidadora, puritana. É tida como incapaz, tendo obrigação para com o “lar”, filhos e marido. Tem vagina, órgão intocável, sagrado, misterioso.
O menino é o azul, a menina o rosa. O menino é o carro, a menina a boneca. O homem o futebol, a mulher a novela.
O pensamento social é engessado, emoldurado em conceitos. Basta fugi-los e será julgado. Nenhuma mulher gosta de apanhar. Nenhuma mulher merece ser violentada, independente da forma como encara o seu processo de vivência.
Os olhos do mundo estão cegos. A sociedade está submersa na lógica de “o que não me atinge diretamente não interessa; e briga entre marido e mulher ninguém mete a colher”. Mete sim! É nosso dever. Precisamos encarar todos os tipos de violência como um problema grave, que precisa ser defrontado.
Até lá, meu corpo não se calará, minhas palavras serão infinitas e minha escrita se fará presente. Mulher merece muito mais.