Flannell
Avistei-a saindo do banco, indo em direção à faixa de pedestres. Poderia ser qualquer outra (avenida, esquina, década, galáxia, garota). Eu não ficava estático, mumificado, aparvalhado, enfim, tão facilmente - não de uma maneira tão sublime, surreal - há um tempo considerável.
O sinal verde tinha acabado de aparecer para os carros.
Por que não tentar? Por que ser complacente com a covardia e com a vergonha - ah, sempre tão presentes! - enquanto um arrebato de sístole/diástole catalisador de sonhos instantâneos do tipo só ocorreria no próximo ano bissexto? Por que não arriscar uma decepção pós-tentativa?
Fustigado por uma empáfia oriunda de algum moqueado covil de minha alma, avancei em sua direção. De forma tímida, porém, decidida. Paradoxal, mas quando dei por mim, segurava seu antebraço. Ela virou assustada.
"Oi", falei e sorri.
Ela retirou um fone do ouvido e respondeu com um "oi?", com uma expressão mista de "eu te conheço de algum lugar?" com "eu não tenho dinheiro não, moço!".
"Escuta, você vai achar que eu sou louco", falei, observando sua face adotando uma expressão de "HÃ!?". "Qual é o seu nome, mesmo?", perguntei.
"Mari", respondeu ela.
"Mari, presta atenção: isso não aconteceria se não fosse predestinação. Já olhou pela janela em alguma noite quente de verão e percebeu como o Universo é incomensurável e se perguntou o porquê de, entre tantas Eras, você ter o encarne nesta?", falei, observando pelo canto do olho o farol trocando do verde para o amarelo. Eu não tinha tempo a perder, portanto, continuei falando:- "Não acredito em predestinação, apesar de ter mencionado a palavra. Essas coisas, para mim, não passam de um jogo que não acaba quando vamos todos para a caixa de brinquedos, sabe!? O que eu quero dizer, Mari, é que apesar disso aqui ser mero acaso, não é por acaso, entende?".
Quando parei de falar o farol ficou vermelho e os pedestres apressados começaram a passar por nós. Ela sorriu e saiu andando.
Senti meu coração sendo destroçado uma vez por segundo. Trinta dolorosas fissuras depois, ela pára no meio da avenida e dá meia-volta.
"Que porra é essa que você cheirou?", quis saber.
"Por que você voltou?", eu também quis saber.
"Sei lá... Não sei... Foi a coisa mais estranha que já me falaram até hoje".
"Mari, me dá a sua mão?", tomei a mão dela, antes de ouvir a resposta. "Mari, você quer tentar?".
"Tentar o quê? Eu nem te conheço, meu...", falou, embaraçada, constrangida e até mesmo irritadiça.
Não por menos.
"Você SE conhece, menina?"
"Não..."
"Preocupe-se com isso, apenas".
"Mas nem seu nome eu sei qual é; o que você faz da vida..."
Mostrei o crachá da empresa.
"Ta aí: meu nome e pra quem eu vendo meu tempo pra me manter vivo. Fora isso, eu escrevo. E sonhei, por dias e por noites, com esse choque que você me deu à primeira vista".
Um motoqueiro buzinou, olhando pra minha cara. E o farol ficou verde.
"Tudo bem, eu perdôo a sua cara de deboche e dúvida. De consternação. Você está ouvindo coisas demasiadamente inacreditáveis de alguém que você conheceu dois faróis fechados atrás, mas..." - e dei de ombros.
Ela riu, e, quando tornou a falar, seu olhar estava mais à vontade; seus olhos irradiavam um brilho de genuína curiosidade - talvez por detrás deles houvesse o ego do tamanho de Júpiter, um tanto empoeirado, precisando de uma polidinha de leve; algo que eu, sinceramente, considerava improvável, dada sua beleza simplória e mesmerizante.
Continuávamos com os mindinhos de uma mão enlaçados.
Tirando dois segundos para refletir, fiquei surpreendido com a situação que acabara criando. Era loucura! Estaria eu, na fila do banco, dormindo e sonhando? Era loucura - e era real. Tão real que faltavam cinco minutos pro expediente bancário ser encerrado e eu precisava sacar uma grana considerável pro caixa da empresa e também pagar umas contas.
"Vem comigo", disse.
"Onde?", perguntou.
"No banco, tirar a impressão inicial de pedinte que eu passei".
E não é que ela entrou comigo?!
Ficamos recostados em uma barra de ferro da fila. "pipipi". "pápápá".
Eram as mesmas caras de sempre do lado de dentro do caixa.
"Próximo", chamou o Well. Um gordinho simpático que se traía na foto do crachá. Eu adorava debruçar naquele balcão enquanto ele passava dezenas de Guias do Governo no leitor de código de barras pra ficar olhando a foto do crachá dele. Ele tinha uma expressão de "estou entediado com o mundo"/"eu sou capaz de comer o seu rim"/"não sofri bullying na escola, viu?" tão sincera que eu chegava a me sentir meio pederasta na insistência da contemplação da bendita foto.
"Quem é a garota?", perguntou.
"Tira o olho, rapá!"
Mari esperava sentada.
Me esperava sentada.
Well terminou com os pagamentos e me deu os três mil paus, que eu logo enfiei no bolso.
"Por que você nunca guarda esse dinheiro de forma decente, hein?"
"Well, olha pra minha cara; mas olha bem. Agora olha pra minha roupa. Que perigo eu corro de ser assaltado?"
"Até que pra alguém com essa cara e essa roupa você está bem acompanhado hoje, né?"
Trocamos um aperto de mão e eu dei o fora dali.
Com a Mari ao lado.
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Não sei como terminar essa porra. E nem quero deixá-lo encostado numa maldita pasta de textos que começaram bem e depois me encheram o saco. Talvez precisem de um final feliz.
A "Mari" existe. O sentimento fugaz e arrebatador existiu, realmente. Eu encontrei "Mari" em um farol da Avenida Paulista depois de tomar um chá de cadeira na fila de um banco e pronto pra tomar outro chá de cadeira em outro banco, do outro lado da Avenida. "Mari" usava AllStar baixo, sem meias. Pernas brancas, brancas e brancas à mostra com um short curto (mas não tão curto), branco, largo. "Mari" usava uma camisa de flanela azul e tinha o cabelo preto amarrado bem alto e olhos verdes e o nariz grande. Com fones brancos de IPod. Passeando em horário comercial. Atravessamos a Avenida Paulista lado a lado. O tempo estava abafado. Fui para um lado e Mari foi pro outro. Já no outro banco, debruçado no balcão enquanto "Well" ralava com as contas, eu escrevi esse negócio no envelope da empresa.
Escritor sofre, cara...
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Lobão - Vou Te Levar