A xícara e o tilintar.
Estudos comprovam que nossos ouvidos constituem mecanismo certo para desencadear lembranças direta ou indiretamente ligadas a um som específico. Um barulho qualquer que deixa de ser um simples arranjado sonoro para se tornar o principal responsável pela lembrança exumada de nossa mente.
Catarses sonoras alimentam a alma.
Como o barulho espalhado e contínuo dos pingos de chuva sob o capô do carro que me faz lembrar do seu sorriso farto ao volante. Reparando no fraco delineamento da chuva que ganha forma em meio aos feches de farol alto. Você não se preocupa com a finitude da estrada, mas tão somente em achar bonito o que para muitos não tem cor ou som.
A chuva fria não nos toca, mas arrepia. Você se diverte tanto com o quase contato que toda a maturidade dos seus vinte e nove e meio se dissolvem por completo. Os pingos explodem no vidro temperado e o corpo se retrai de forma instantânea.
O café preto que impregna a porcelana pintada com um sabor pungente e acalenta a boca seca, queimando sempre a ponta da língua, é gosto que não se discute. Percorro a borda dourada da velha xícara com a ponta do dedo indicador para depois depositá-la no perfeito espaço, um pires que jamais se recusa a fazer par.
Catarses sonoras despertam recordações embaçadas, displicentes, embaralhadas nos canais vitais que dilatam conforme a música, respondendo ao incentivo totalmente involuntário de um barulho qualquer.
O tilintar agudo da porcelana roçando é melodia certa para os ouvidos que não tomam o café, mas bebem das lembranças trazidas pelo estalar da louça fina. Lembro-me das coisas que escrevo e de como me sinto ao escrevê-las. Lembro-me de meu real desejo, lampejo de felicidade que percorre a espinha dorsal.
Não saberia dizer das lembranças desenterradas pelas notas de “João e Maria”. Chico Buarque ilustrou minhas aulas de história do Brasil enquanto as cordas do violão rendiam-se aos dedos de minha mãe.
O ronco de um motor. O galo que canta próximo à janela. O grito da vizinha que se pendurava no muro de placas para pedir uma xícara de açúcar. A música irritantemente repedida sempre no mesmo horário. A vinheta da rádio local. O jingle do comercial de refrigerante.
Escute e deixe fluir. Estou na estrada agora, mas dessa vez sozinha. Timidamente “With Or Without You” começa a tocar e não há barulho de chuva. O fim de tarde atenuado pelo filme que escurece o vidro do carro não me lembra você.
O que me faz lembrar do seu sorriso farto é a música. A mesma música que tocou na noite em que a estrada pareceu não ter fim. Você se divertiu tanto com a doçura do momento que a sua maturidade de homem feito dissolveu-se por completo.
Somos um emaranhado de nós cegos. Um novelo de lã que serve de brinquedo para o gato barrigudo. Somos o resultado de nossas experiências, profundas saliências no rosto truncado, na testa franzida pelo sentimento desvelado. Sentido que nos toca fundo, e nos remete ao mundo que existe dentro de nós.