A Alma e a Sombra

Foram vários dias de hesitação sobre o que fazer com a frondosa oliveira que sombreava nosso pequenino quintal. Com pouco mais de cinco anos de plantada, ela já parecia bastante adulta, face o seu rápido desenvolvimento. Ela crescera muito, tornando-se alta e copada. Seu caule era robusto e já media quase quatro metros até às ramificações das galhadas. A folhagem era espessa o bastante para nos fornecer uma sombra que guardava todo terreno dos fundos da casa a partir do meio dia, o que nos proporcionava o resfriamento das pedras do solo, além do arejamento natural do ambiente. Quase que diariamente eu desfrutava dessa riqueza que aquela fruteira me dava. Ficava algum tempo usufruindo daquela magnífica sombra, que eu considerava a alma da árvore.

É evidente que quando plantei a muda que daria tão belo exemplar, desconhecia os problemas que poderiam advir com o seu crescimento.

É claro, também, que para quase todo benefício há um custo. E esse esplendoroso sombreamento também tinha o seu. Quando o pé de azeitona tomou a proporção já relatada, deixava continuamente o rastro natural do seu desenvolvimento no solo calçado, ou seja, despejava uma grande quantidade de folhas diariamente, ocasionando um trabalho adicional para que se mantivesse limpo o calçamento. Esse trabalho era multiplicado por muitas vezes quando chegava a época da muda de folhas, floração e maturação dos frutos. A conjugação de todos esses fatores simultâneos provocava uma sujeira que beirava à imundície, se não fosse feita uma limpeza do local várias vezes por dia. Além desse quadro, havia também o inconveniente de os galhos extrapolarem os limites do nosso terreno, alongando-se sobre os telhados e quintais vizinhos, logicamente provocando os mesmos estragos que aqui.

Outro custo, este mais importante, era o provocado pelas raízes. Com o fortalecimento do caule, que tomou um diâmetro considerável, naturalmente para poder suportar a imponente fronde, as raízes axiais também cresceram proporcionalmente, ocasionando rachadura em paredes, danos na calçada e no calçamento, além de infiltrações outras.

Inúmeras foram as providências que tomei a fim de minimizar os problemas, mas todos paliativos que apenas adiavam a solução final. Foram feitas várias podas de galhos e de raízes, mas sem efeito definitivo.

Desde o final de 2002 que eu havia chegado à conclusão de que a saída era o corte radical da oliveira. Mas fui adiando essa decisão mesquinha de me livrar do problema de forma tão fácil, mas dolorosa. Era como se fosse cortar um pedaço de cada um de nós, ou mesmo como se fosse perder um membro de nossa família. Entretanto, após a avaliação custo/benefício, decidi pelo corte puro e simples daquela que nos tinha proporcionado tanto conforto durante um bom tempo. E, no início deste ano de 2004, abati a nossa oliveira, e em conseqüência, extingui sua sombra, sua alma.

Hoje, jazem no quintal, como uma lembrança fúnebre, três rolos do tronco e outros três rolos de galhos mais fortes que “caíram aos golpes do machado bronco”, e que serão incinerados na fogueira de São João deste ano, selando definitivamente a sorte da nossa árvore e, com ela, sua alma, sua sombra. E, como todas as vezes que vou lá atrás de casa, lembro, e até sinto, a presença da árvore e a ausência da sombra, passo a concordar com o poeta Augusto dos Anjos, no Soneto A Árvore da Serra, de que as árvores têm alma, pois tenho a sensação, também, que um pouco de mim jaz abraçado àqueles troncos caídos na terra, sem alma.

C. Grande, PB, 15 Jan 2004

Joanilson
Enviado por Joanilson em 29/03/2011
Reeditado em 28/07/2020
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