Hoje fui assombrado
Resolvi caminhar por ruas há muito conhecidas, pelas quais já passei inúmeras vezes. O dia é belo, do Sol emana um calor agradável, a brisa refresca e vez ou outra piso, sem ao menos notar, numa poça de água turva, resquício da chuva do dia anterior, e sorrio. Sinto-me quase feliz, quase em paz, enquanto piso com pés molhados o frio concreto da calçada, e observo tudo ao meu redor.
Passado certo tempo, do qual não tenho exata medida, uma noite sem entregar-se a escuridão do sono nubla nossa percepção, encontro um bar de portas fechadas. Logo na frente da entrada dele, uma arvorezinha de folhas verdes e compridas, como penas clorofiladas, e abaixo dela, uma memória. Vejo uma mesinha, canecos de chopp, eu e uma mulher, tudo translúcido como névoa pela manhã. Nós sorrimos, em meio a uma luta para decidir quem paga a conta; escondo o papelzinho com números rabiscados atrás de mim, quando ela tenta apanhá-lo, quase me abraçando, roubo-lhe um beijo. Ela enrubesce tímida e exuberante, eu escancaro meu deleite com um sorriso que afastaria a mais profunda escuridão. Nos levantamos, a abraço com uma mão, que cai sobre seu ombro, ela enlaça minha cintura com os braços, e repousa a cabeça em meu peito, com os olhos fechados, confiando em mim como guia. Enquanto nos vejo rumo a qualquer outro lugar, com brilho nos olhos e alegria estampada nos rostos, um carro cruza meu campo de visão, quando ele some, sobem também aqueles fantasmas de um passado feliz. Algumas pessoas lançam-me olhares duvidosos ao ver-me parado na calçada, com pés úmidos, fitando coisa nenhuma. Dou de ombros e torno a andar, entro em vielas sem saber quais são, passo por casas que me parecem familiares, ofego ao subir uma ladeira, alcanço um ponto de ônibus, sento-me na pedra fria, e num suspiro encaro de cima locais conhecidos.
Perdido em tola nostalgia, mal noto o ser feito de bruma que assentou-se ao meu lado, prestando atenção, vejo em sua forma os contornos de um amigo que dolorosamente se foi. Seus lábios se movem, ainda que som não seja produzido, não importa, entendo o que ele diz, e com um aceno concordo com o que é dito. Continuo com o olhar no horizonte infindo, agora bem acompanhado, não preciso virar-me para ver meu antigo companheiro, sinto sua reconfortante presença. Novamente, o tempo flui sem que se saiba o quanto, vejo sua mão enfumaçada mover-se em direção ao meu ombro, e um sorriso de despedida, maravilhosamente triste, em seu rosto. Suplico-lhe que não vá, com olhar sereno e piedoso deixa claro que não há o que se fazer, pouco antes de sua mão tocar-me a brisa passa e desmancha sua imagem, amaldiçôo-a. Olho os restos daquela aparição, que tal como fumaça de cigarro deixa um rastro a medida em que sobe livre ao firmamento, e ponho-me em movimento. Dou um outro tanto de voltas, e vejo-me diversas vezes assombrado por um passado que queria que fosse presente. Em vários locais vi-me a gargalhar com amigos, segurando encabulado a mão de uma dama por quem me enamorara, atravesso cenários e amigos imateriais. Toda vez que tentei agarrar, interagir ou até mesmo guardar na memória cena mais vívida do que tinha antes, daquilo que aconteceu num tempo que se foi; algo o carrega para longe, dissipa a doce lembrança. Não muito mais tarde, paro de me ver rindo com fantasmas que também o fazem, por mais que procure, os portões de tempos idos estão selados.
Ainda que desejoso de mais, sinto-me leve, foi me dada enorme dádiva, pude estar em contato, mesmo que mal possa chamá-lo assim, com uma época de gozo e até ouso dizer, de alguma felicidade; a lembrança de como era fácil rir, do sabor de um beijo apaixonado, daqueles que me acompanhavam num inebriante desfrute da vida. Então, de súbito, meus ombros caem pesados, meu sorriso torna-se doloroso esgar, meu peito aperta, meus olhos ardem. Miro o espaço ao meu lado e vejo quem me acompanha, vejo o vento que passa e move as folhas.