Esse solo fluido
ESSE SOLO FLUIDO
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 16.03.11)
Esse solo fluido em que pisamos e sobre o qual erigimos nossos palácios - um barraco de papelão e zinco é o palácio possível de quem não tem alternativa de moradia -, esse solo fluido já foi muitas vezes chamado de terra firme. Todos nós achávamos que a terra era firme, que a rocha era inabalável, que os rochedos garantiam a segurança contra tudo, especialmente contra os fenômenos da natureza. Uma questão de referência, enfim, sem a qual o ser humano sente-se perdido, desorientado, inquieto. Mortalmente inquieto.
O grito de esperança na época épica das grandes navegações, das viagens românticas em naus incertas, tão incertas quanto descartáveis eram as caravelas portuguesas, esse grito de renascimento que brotava do alto das gáveas, locais privilegiados de observação dos arredores distantes, era "Terra à vista!"
Terra à vista comunicava que, em pouco, todos estariam pisando solo firme em contraposição ao balanço infindável do mar. Mesmo que fosse para se defrontar com canibais, selvagens hostis e, pior, bem pior que todos esses, com europeus "civilizados" de facções religiosas, políticas ou nacionais contrárias. Mas, de qualquer forma, seria um combate ou um repouso em terra firme, ao abrigo dos movimentos traiçoeiros e sempre perigosos do mar, tão perigosos que um rochedo encravado nas águas significava risco iminente de naufrágio sob a observação atenta e interessada dos tubarões sempre de plantão onde houvesse um navio fazendo água.
Descobrimos depois, porém, mais recentemente, que o solo se move como todos os fluidos, deslizando ladeira abaixo do alto das montanhas e levando tudo de roldão. Se, no entanto, o chão resistir, uma grande onda, uma estupenda maré súbita de 10 metros de altura, viajando à velocidade espantosa de 800 km/h, tudo pode varrer, implacável, ignorando solenemente que a terra seja firme e fazendo-se, ela própria, a fluidez irresistível do solo, diluindo num instante todas as nossas certezas e as nossas referências.
Referências espaciais, geométricas, cinéticas e temporais abaladas num só golpe, como na última sexta-feira, quando Honshu, a principal ilha do Japão, foi deslocada 2,5 metros para o lado, o eixo de rotação da Terra, alterado em 10 a 25 centímetros, a rotação do planeta, acelerada em 1,6 microssegundo e a duração dos dias, reduzida em alguns milissegundos.
E, aqui, não parou de chover.
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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, diversos outros ainda inéditos, participação em 32 coletâneas e 44 premiações em concursos literários no Brasil e no exterior.
==> Em breve, "Se Te Castigo É Só Porque Eu Te Amo" (teatro) chegará às prateleiras das livrarias.