Impressões selvagens
O motor-de-linha vai tossindo pelo rio. Vejo o banzeiro resvalando nos troncos que saem d'água. Alguns tufos de mato solto balançam por horas, até chegarem á margem.
Uma nuvem de mutucas, antes invisível, surge na minha frente. O piloto acende o seu lampião de querosene e a nuvem de insetos é substituída pelo fumacê que, com um sopro de vento, se dissipa.
As águas do rio estão calmas. Opacas como sempre, atiçam minha imaginação. Crio mundos aquáticos escondidos e monstros assustadores no leito do rio.
Algo sob até a superfície e rapidamente submerge. Não sei dizer o que é. Pode ser um pirarucu ou uma sucuri que veio respirar. Pode também ser uma tartaruga ou um peixe-boi, mas nossa imaginação sempre tende ao mais assustador.
Ontem mesmo, um ribeirinho dizia que existia nessas bandas décadas atrás uma sucuri especializada em derrubar barcos, inclusive os grandes.
Mas o medo se dissipa como a nuvem de mutucas. Resta ainda a desconfiança com essas águas misterioras, mas prefiro, agora, contemplar as barreiras do rio, esse imenso muro verde.
Não há nenhuma pista de barranco, as árvores parecem ter engolido a terra, avançando até o rio, como se estivessem com sede. Em certos pontos, a selva parece afinar o poderoso rio.
No meio da confusão de troncos, cipós e folhas, qualquer movimento pode ser algo a nos observar. Por exemplo, naquela árvore ali, que julguei estar se mexendo por causa do vento, estão dois macacos de cheiro.
Ás vezes, o movimento não denuncia a presença de algo, mas o som. Os sons são os mais curiosos possíveis. O urutau, por exemplo. Seria impossível achar o dono de pio tão triste e profundo, já que essa ave fica grudada no tronco das árvores imóvel e sua cor ajuda e muito a se fundir com as árvores. Alguns acham seu pio assustador, eu não; acho melancólico. O urutau deve ter muita história para contar.
É indescritível a sensação de andar por esse labirinto fluvial. Cercado de selva pelos lados, a sensação é um misto de admiração, medo e curiosidade. Essas mata densa parece vibrar, como se fosse um só organismo, pulsando, nos observando.
Na Idade Média, existia aquela idéia de que as catedrais deveriam ser construídas de forma oponente para que o homem se sentisse pequeno diante de tais obras. A selva é como essas catedrais. Nos faz sentir como formigas. Essa obra da natureza, no entanto, é muito mais difícil de ser decifrada que os arcos e abóbadas das catedrais góticas. E na realidade, é melhor que continue esse maravilhoso mistério.
O dia vai bocejando e o motor-de-linha continua tossindo.