Lucro postal/edital
“O carteiro é um atleta permanente”.
Uma das particularidades nacionais, diante da necessidade de emprego, é jamais questionar as condições de trabalho. A frase “o carteiro é um atleta permanente” que escrevi para zombar da falta de humanidade no trabalho está bem representada no edital deste último concurso para os gloriosos multimilionários Correios do Brasil nas particularidades do cargo: Nas Agências de pequeno porte o Atendente Comercial realiza, também, a distribuição domiciliária de objetos, sendo o trajeto percorrido a pé ou de bicicleta sob condições climáticas variadas (calor, frio, sol, chuva).
Para tanto tem que ser aprovado em teste de barra fixa e impulsão horizontal. É a literal exploração dos mais fortes. Os gordos serão discriminados com bela artimanha.
O que nos diferencia do Japão que reconstrói com excelência, após a grande tragédia do mar sobre eles, é que nós nos construímos miseráveis nesses itens de parceria no que tange as melhores condições de trabalho. Agrada-nos fazer sofrer para merecer o salário indigno de quatrocentos e poucos reais. Essa idéia de coisa fácil, uma chuvinha, um frio pestilento, um calor tórrido, demanda heroísmo. O heroísmo é o gesto que anula a competência, pois vem da fé idiota onde o que determina de fato é inexistência de elevado nível técnico. É assim para os carteiros e também para os professores. Há pouco tempo (guardei as fotos) uma professora, também enfermeira, recebeu uma vaga para atuar pela Secretaria da Saúde num distrito nas duas áreas. Distrito é o nome que se dá a pequenos casarios dentro de latifúndios a perder de vista com alguma escola e quase mais nada. Na casa cedida pela estância estão amontoados pelo menos sete mulheres e um homem casado, o único com quarto privado. Os demais obedecem a triste regra das repúblicas. A professora também enfermeira solicitou uma casa condigna e a Secretaria da Saúde lhe forneceu o escárnio que restava. Há algo de sádico na resposta destas revoltas dignas e de direito que muitas vezes somos obrigados a suportar. A casa de porta sem trinco, com janelas quebradas, banheiro com vaso sem tampa, vidros, quebradas, infiltrações lhe foi concedida. Como uma moça pode dormir num lugar abandonado em meio ao campo e ao mato nestas condições? Uma professora! Uma enfermeira!
Para eles isso é normal. Todos trabalham assim. É assim. Acreditamos que trabalhar em condições de conforto não paga com sangue o salário de gente humilde. Confundimos dignidade com suntuosidade. Colocamos em primeiro lugar as lutas morais da frivolidade no currículo de nossa espécie brasiliana. Estamos falando de gente peneirada em concurso público, cinicamente, para se expor a chuva, ao sol e as veleidades de um sistema organizado. Um sistema que lucra com este tipo de esforço. Lucro gigantesco que ninguém sabe para onde vai. Lucro postal, virtual e de mínima correalidade.
Provavelmente só o dinheiro gasto no anúncio de concurso já atenuava as condições de trabalho em meio a intempérie desses homenzinhos de amarelo que caminham pela rua.