Pensamento não se Lê

Pensamento não se lê...

Marilu pulou da cama espantada. Diferente dos outros dias que abria os olhos vagarosamente, estirava um braço, outro, alongava a coluna, as pernas, abraçava o travesseiro, virava pra direita, pra esquerda, até que com pouca coragem ficava em pé.

Mas hoje tinha hora marcada no dentista. Gostava de ser pontual. Portanto, levantou-se rápido e caiu em baixo da água morna do chuveiro, que lhe massageava as costas, o rosto, dando –lhe um agradável bom - dia.

Chato esse negócio de dentista. Ficar com a boca escancarada com 28 dentes que podem precisar obturar. E quem tem todos os terceiros molares são 32 oportunidades de adquirir cárie. Mas, temos que zelar pelo visual....fazer o quê? Pior é ficar banguela....e como o Brasil está cheio deles! Salário apertado...dinheiro curto... Para a maioria o dinheiro mal dá para comer.... e sem mastigar....não se tem dente.

Marilu fez a higiene da boca. Passou fio dental entre os dentes. Escovou para direita, para esquerda, para cima e para baixo. Bochechou, depois vestiu –se e saiu para seu destino.

Adentrando na sala de espera do consultório conferiu o relógio. Estava exatamente na hora marcada. Nove horas. Sentou-se em frente de um jovem rapaz, bem vestido que lia uma revista. Pensou com seus botões:

- Será que ele vai entrar na minha frente? Eu tenho hora marcada.

Ele por sua vez observava Marilu e pensava consigo mesmo.

- Que moça do olhar bonito.

- Ele deve ser advogado. Usando terno, mas não é por isso que vai tomar meu lugar.

Marilu estranhava a demora da espera. A atendente não aparecera. Resolveu ler um livro que estava em sua bolsa. Comédias da Vida Privada, de Fernando Veríssimo. Cada crônica interessante. E deixava escapar um sorriso entre uma e outra leitura.

De lá ele observava:

- Que sorriso cativante!

Enquanto isso Marilu pensava:

- Está me olhando muito. Vai pedir para passar na minha frente. Cara de pau pensa que só ele tem o que fazer. Não cedo.

E ele continuava olhando para ela.

- Vou puxar uma conversa. Mas o que devo dizer?

E ela:

- Tem cara de Mauricinho. Filho de papai mal acostumado. Pensa que pode comprar todo mundo. Ele que marque hora e espere sua vez.

Ele:

- Tenho que sair daqui com o telefone dessa gata. Como me agradou! Sou capaz de passar o dia inteiro aqui olhando para ela.

A porta abre a atendente aparece e diz para Marilu:

– Liguei para sua casa para dizer que sua consulta ia atrasar. A senhora já tinha saído. Pode me dar seu celular para evitar outro transtorno? Aconteceu uma emergência e atrasou tudo. Agora que é ainda a vez desse senhor que tem hora marcada antes da senhora.

Antes que Marilu dissesse alguma coisa ele se antecipou:

- Não, não, ela pode entrar na minha frente. Eu espero.

Marilu esboçou um sorriso encabulado e sem jeito agradeceu a cortesia do rapaz. E já sentada na cadeira com a boca escancarada, pensava:

- Meu Deus! Por que aceitei passar na frente dele? Ele foi apenas delicado. Nossa! Vou lhe pedir desculpas na saída. Pensando bem, além de delicado ainda é um gato.

Mas para decepção de Marilu, quando chegou à sala de espera estava vazia. Ele resolver marcar sua hora para outro dia.

Em casa não tirava o pensamento do ocorrido. Lamentava ter perdido a oportunidade de ter puxado conversa com alguém tão solicito e educado. Um cavalheiro. Um gentleman. E envergonhava - se de ter feito conclusões absurdas de uma pessoa que estava vendo pela primeira vez.

Seu pensamento é interrompido com a chamada do celular. Número desconhecido. Quem será?

- Alô.

- Desculpa estar te ligando. Sou aquele rapaz do dentista.

- Ah! Você....que surpresa! Como conseguiu meu telefone?

- Gravei quando deu para atendente. Quer ir ao cinema comigo hoje?

- Claro....

O resto desse romance, só sabe Deus...

Mas a lição Marilu aprendeu. Não julgueis ninguém antecipadamente.

Maria Dilma Ponte de Brito
Enviado por Maria Dilma Ponte de Brito em 10/11/2006
Reeditado em 12/06/2020
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