Um sonho qualquer
Dos sonhos lembramos pouco. Talvez de alguns fragmentos apenas, e é dificil saber com certeza se a história se torna lógica, ou contável, porque a mente consciente preenche os espaços vazios. Os sonhos parecem, em parte, como lembranças da infância. Não há mesmo como ter muita certeza se realmente tudo o que a memória nos conta a respeito daquele tempo passado é fiel. O mais desconcertante em tudo isso é que, ao menos quanto ao que é real, é até possível confrontar as memórias com os testemunhos de pessoas de carne e osso, ou com outras provas supostamente irrefutáveis. Ainda que uma vez que outra, é claro. Mas com os sonhos não é assim. Não há como confrontar nada. Então, você fica à mercê de sua própria fé. Acreditar nos sonhos, ou não, é uma questão de escolha. Mas alguns, não tenho dúvida, não podem ser ignorados. Há alguns dias atrás ocorreu-me um sonho que se passou mais ou menos como agora passo a relatar. Alguns acréscimos foram postos nessa história, naturalmente, menos por ter minha mente consciente a julgado interessante do que pela sua vontade incontrolável de obter algum crédito, poético é claro, às custas da incontinência do meu inconsciente. Nada que me surpreenda. Por uma razão obscura, o roteirista do meu sonho pintou-me gorda, velha, com uns poucos cabelos brancos, metida em um avental imundo. Essa estranha 'eu' trabalhava em uma cozinha que deveria servir refeições para muitos. O lugar se parecia com um navio. Tenho vagas lembranças do “Encouraçado Potemkim”, mas quando penso em explicar como era esse lugar, lembro do filme (As memórias são mesmo engraçadas). Por outro lado, talvez nem fosse mesmo um navio. Mas que haviam marinheiros, haviam. O que importa é que naquela cozinha aparecia, vez que outra, uma menina muito suja, maltrapilha, ladra, mal-humorada. Como não havia absolutamente ninguém por ela, acabou acolhida pela eu-cozinheira. Acho que mais para evitar complicações do que por outra coisa. Aos poucos fui ensinando a ela tudo o que sabia, e apesar de continuar a dirigir a todos suas malvadezas, a mim passou a dedicar confiança e até um certo amor. A amizade se firmou de uma forma inexplicável, especialmente porque unia duas pessoas tão estranhas e diferentes (Outra particularidade dos sonhos é que eles se parecem com o cinema. Anos passam de um minuto para o outro. E é assim que eu vou me encaminhar para o final dessa crônica). Passados vários anos, a velha eu-cozinheira, ainda mais velha que o tempo, aposentada, liberta daquela caixa metálica, infinitamente mergulhada em uma nebulosidade de vapores e cheiros, que chamavam de cozinha. O dia era de temperatura agradável, com um sol da manhã quase mágico a esquentar o corpo, e a eu-cozinheira está entrando em um restaurante recém inaugurado, embora modesto. Lá é recebida pela dona, a velha amiga da velha cozinha esfumaçada. A menina se tornou uma mulher de sucesso. Surpresa ficou a eu-cozinheira com tudo o que lhe contava a amiga, especialmente pelos pratos que criou e que eram famosos entre os clientes. Lembro bem da cena em que ambas olham juntos o menu. Em seguida, a eu-cozinheira passa a sentir uma vontade incontrolável de demonstrar àquele amiga o quanto ela é importante e o quanto ela é amada. Havia ali um sentimento de quase impotência, pela impossibilidade de demonstrar ao outro a grandeza desse sentimento. E havia também a vontade de fazer tudo por ela, até se sacrificar se fosse preciso. Então, eu abraço a amiga e choro. Copiosamente choro. Ao abraçá-la, começo a perceber, leve e lentamente que ambas estamos vestindo a mesma roupa; que possuímos a mesma estatura; e terminei me vendo tão nova e tão disposta quanto ela. Percebo que somos, enfim, a mesma pessoa. Durante todo o tempo, afinal, era eu a cuidar de mim mesma. Escrevo esse texto deitada, pensando na vida, esperando por algo que nem eu sei exatamente o que é. Talvez eu queira apenas agradecer.
Dos sonhos lembramos pouco. Talvez de alguns fragmentos apenas, e é dificil saber com certeza se a história se torna lógica, ou contável, porque a mente consciente preenche os espaços vazios. Os sonhos parecem, em parte, como lembranças da infância. Não há mesmo como ter muita certeza se realmente tudo o que a memória nos conta a respeito daquele tempo passado é fiel. O mais desconcertante em tudo isso é que, ao menos quanto ao que é real, é até possível confrontar as memórias com os testemunhos de pessoas de carne e osso, ou com outras provas supostamente irrefutáveis. Ainda que uma vez que outra, é claro. Mas com os sonhos não é assim. Não há como confrontar nada. Então, você fica à mercê de sua própria fé. Acreditar nos sonhos, ou não, é uma questão de escolha. Mas alguns, não tenho dúvida, não podem ser ignorados. Há alguns dias atrás ocorreu-me um sonho que se passou mais ou menos como agora passo a relatar. Alguns acréscimos foram postos nessa história, naturalmente, menos por ter minha mente consciente a julgado interessante do que pela sua vontade incontrolável de obter algum crédito, poético é claro, às custas da incontinência do meu inconsciente. Nada que me surpreenda. Por uma razão obscura, o roteirista do meu sonho pintou-me gorda, velha, com uns poucos cabelos brancos, metida em um avental imundo. Essa estranha 'eu' trabalhava em uma cozinha que deveria servir refeições para muitos. O lugar se parecia com um navio. Tenho vagas lembranças do “Encouraçado Potemkim”, mas quando penso em explicar como era esse lugar, lembro do filme (As memórias são mesmo engraçadas). Por outro lado, talvez nem fosse mesmo um navio. Mas que haviam marinheiros, haviam. O que importa é que naquela cozinha aparecia, vez que outra, uma menina muito suja, maltrapilha, ladra, mal-humorada. Como não havia absolutamente ninguém por ela, acabou acolhida pela eu-cozinheira. Acho que mais para evitar complicações do que por outra coisa. Aos poucos fui ensinando a ela tudo o que sabia, e apesar de continuar a dirigir a todos suas malvadezas, a mim passou a dedicar confiança e até um certo amor. A amizade se firmou de uma forma inexplicável, especialmente porque unia duas pessoas tão estranhas e diferentes (Outra particularidade dos sonhos é que eles se parecem com o cinema. Anos passam de um minuto para o outro. E é assim que eu vou me encaminhar para o final dessa crônica). Passados vários anos, a velha eu-cozinheira, ainda mais velha que o tempo, aposentada, liberta daquela caixa metálica, infinitamente mergulhada em uma nebulosidade de vapores e cheiros, que chamavam de cozinha. O dia era de temperatura agradável, com um sol da manhã quase mágico a esquentar o corpo, e a eu-cozinheira está entrando em um restaurante recém inaugurado, embora modesto. Lá é recebida pela dona, a velha amiga da velha cozinha esfumaçada. A menina se tornou uma mulher de sucesso. Surpresa ficou a eu-cozinheira com tudo o que lhe contava a amiga, especialmente pelos pratos que criou e que eram famosos entre os clientes. Lembro bem da cena em que ambas olham juntos o menu. Em seguida, a eu-cozinheira passa a sentir uma vontade incontrolável de demonstrar àquele amiga o quanto ela é importante e o quanto ela é amada. Havia ali um sentimento de quase impotência, pela impossibilidade de demonstrar ao outro a grandeza desse sentimento. E havia também a vontade de fazer tudo por ela, até se sacrificar se fosse preciso. Então, eu abraço a amiga e choro. Copiosamente choro. Ao abraçá-la, começo a perceber, leve e lentamente que ambas estamos vestindo a mesma roupa; que possuímos a mesma estatura; e terminei me vendo tão nova e tão disposta quanto ela. Percebo que somos, enfim, a mesma pessoa. Durante todo o tempo, afinal, era eu a cuidar de mim mesma. Escrevo esse texto deitada, pensando na vida, esperando por algo que nem eu sei exatamente o que é. Talvez eu queira apenas agradecer.