O LADO B DO CARNAVAL DA BAHIA

Passada a euforia do carnaval baiano, ficam lembranças para todos os tipos de foliões, cada cabeça é um mundo, já dizia minha avó, cada folião é um universo, da Liberdade à Ondina tem loucura para todos os gostos, mesmo tendo a festa virado uma performance mais comercial que cultural. Entretanto o carnaval baiano, por incrível que pareça, ainda tem seus encantos. A saída do Ilê Ayiê no bairro da Liberdade é um deles, e o “carnaval dos pobres” do trecho Viaduto-da-Sé/Praça da Sé/Rua Chile é outro. O Ilê guarda toda uma tradição de ancestralidade e negritude cravada no carnaval desde os tempos de outrora, que ficou mais explicita, modernizada e consolidada justamente depois da criação desse bloco nos anos 1970. Já o “carnaval dos pobres” sempre existiu, tomava conta da cidade por inteiro, e agora sobrevive incrustado num pequeno trecho do Centro Histórico de Salvador, mantido por um punhado de carnavalescos abnegados e persistentes, apoiado com parcos recursos dos poderes públicos, patrocínios privados nem pensar. É sobre esse lado B do carnaval soteropolitano que eu vou fazer alguns registros pessoais, talvez um desabafo, talvez uma excessiva dose de lirismo na visão da festa, de todo modo uma modesta contribuição para a tal da memória cultural coletiva, já que por não ser tão “glamuroso” ou lucrativo como o circuito Barra-Ondina, o carnaval dos pobres não tem espaço na mídia, quando muito vira matéria na TV educativa, vai caindo no esquecimento, é quase desconhecido pelas novas gerações.

A maior atração do Centro Histórico é o Pelourinho, e lá ocorre um carnaval alternativo, espaço preferencial para tradicionais boêmios de carteirinha, idosos, casais com filhos pequenos e turistas de todos os cantos do mundo, exceção somente nos dias de saídas dos blocos Filhos de Gandhy e Olodum, quando tribos mais midiáticas freqüentam o local. Embora meio que chapa branca, é um carnaval divertido, bandinhas contratadas executam repertórios saudosistas, blocos de percussão e sopro mais encorpados potencializam o clima momesco, o Rolinha Preguiçosa é destaque, as pessoas cantam e dançam sem apertos, podendo deixar até alguma grana no bolso sem serem furtadas. Parte dessa movimentação estende-se até a Rua Chile, cumprindo um percurso oficial que tem prematura hora marcada de encerramento.

Mas o bacana mesmo é varar a madrugada, e ver a festa que rola no Viaduto, na Sé e na Rua Chile, uma dose chocante de realidade, bem distante dos abadás proibitivos dos trios puxados pelos famosos do axé no trecho Barra-Ondina. Prá começar é forte presença do povo de candomblé e grupos de capoeira como destaques dos blocos e afoxés, nos quais a se vê a predominância absoluta de negros e negras como participantes. As fantasias são simples, criativas dentro do possível e acessíveis para os bolsos menos privilegiados. Os ruidosos carros de som dos cantores são de baixa qualidade técnica, com modestos alto-falantes estridentes e fanhosos, os quais muitas vezes quebram durante o desfile, ameaçando deixar a galera na mão. Mas não há nada que tire o pique dos foliões, enquanto tiverem tamborins, agogôs, tambores e mãos para baterem palmas o cortejo segue animado, a festa está garantida até o sol aparecer indicando que mais um dia de carnaval se foi, fazer o que, o tempo nesse caso é do contra, deixa de ser o senhor da razão. O aglomerado de “gente bonita” é um paraíso potencial para fotógrafos, homens e mulheres comuns com suas “caras lindas”, seus trajes coloridos personalizados, e maquiagem de preços populares, compõem um cenário que não merece ser extinto. Não há emissoras de TV fazendo coberturas espetaculosas, o povo simplesmente se diverte porque quer e tem direito, grandes platéias e ibopes não são preocupações na hora da “chuva, suor e cerveja”. Capitulo particular é o som desse grande baile público, nada de complicações eletrônicas ou de fórmulas musicais repetitivas que garantem o faturamento dos grandes astros. O que se ouve é muito batuque, batuque original, samba de primeira, vibração de berimbaus, naipes estridentes de metais mandando ver, charangas nem sempre tão afinadas dando o toque final no delírio geral do reino de Momo. Quando bate a canseira não existem confortos de camarotes, sentar na beira da calçada é um alívio, molhar a goela com uma cervejinha é de lei, o sono vai tomando conta enquanto a moçada espera chegar o horário do “buzú” de retorno para casa.

Acostumadas a ver o carnaval axé da Bahia pela TV, e sua clonagem durante todo o ano em várias localidades do país, muitas pessoas se surpreendem com relatos sobre o lado B da festa. Não somente as residentes em outros Estados,mas, também, os daqui da Soterópolis, principalmente aqueles que moram nos bairros nobres, que nem nos dias normais freqüentam regularmente o Centro Antigo da cidade. Mas esse carnaval espontâneo, nada aeróbico-exibicionista existe, a força do povo é incontrolável, as raízes batem mais fortes, a periferia pede passagem, mesmo enfrentando descasos e adversidades. Quanto a mim, participante e espectador privilegiado desse espetáculo paralelo, fico à espera do próximo ano, já que reproduções periódicas programadas não são possíveis, o carnaval dos pobres acontece apenas uma vez por ano. Então, até 2012, na Sé, Viaduto ou Rua Chile.

Salvador, 10 de março de 2011