OS SÚDITOS DO DINHEIRO

Embora certas experiências me ensinem que não, eu ainda prefiro acreditar que conforme passamos pela vida, ou, na pior das hipóteses, quando mais nos aproximamos do final da logística natural do tempo para então partirmos desta dimensão terrena, nosso entendimento espiritual já deva estar um tanto lapidado para que possamos nos livrar de alguns traços mais elementares do espírito, como por exemplo, a lamentável arrogância.

Todavia, nem sempre tal fato ocorre, e há os que, mesmo a despeito da idade avançada, ainda têm um visão muito limitada do mundo que os cerca, para focar a visão bem alargada ao seu tão pequeno mundo.

Foi nessa linha de percepção que hoje decidi escrever em defesa do meu amigo, o doutor João.

De longe , eu o vi chegar todo animado ao retorno do seu dia- a -dia e eu sabia que vinha mais descansado da dura rotina para, como de praxe, tourear certos pacientes com a mesma perspicácia e cuidado dum toureiro profissional.

Toda profissão tem suas alegrias...e seus espinhos, eu bem sei disso...e ele também.

Ele retornava meio esbaforido dos seus estudos anuais, daquelas reuniões médicas que acontecem para reciclagem dos conhecimentos científicos.

"Você nem imagina como estou cansado, horas e horas de aula...mas o amor à arte sempre é maior que o cansaço", me dizia ele no início do dia.

De repente, ela apareceu. Não, aquilo não poderia ser verdade.

O doutor estava tão feliz naquele dia, e justo ela por ali!

Tratava-se duma senhora octogenária, bonita, lúcida e autoritária, destas que as pessoas classificam como "fina" só porque suas extravagantes condições financeiras sempre lhe proporcionaram súditos por toda a parte desta vida.

Ademais, como existem ridículos súditos do próprio dinheiro!

Ela vinha encaminhada ao doutor João por parte duma outra colega que com certeza desistira de assistí-la.

Acreditava ela poder reinar sobre a secretária e sobre o tal "convênio" que mantinha o doutor ainda digno de tê-la como paciente.

"Você não marcou meu retorno de urgência querida, e mesmo depois que eu lhe exigi, eu poderia ter morrido, o doutor saberá disto e o "convênio" também, então, com certeza, você perderá seu emprego e o doutor perderá o meu seguro saúde-dos melhores da cidade!- aliás, esta consulta não será paga, me nego assinar qualquer papel" disse dona Veridiana logo na entrada do consultório, à educada secretária.

Assim que o doutor a chamou o que pude registrar foi exatamente o que segue:

-Boa tarde, dona Veridiana, como vai?- perguntou o médico.

-Doutor, vou bem mal, meu caso é urgente e eu não lhe encontrei. Faz sete dias inteiros que ligo e não lhe acho para passar o resultado dos meus exames! Aonde o senhor se enfiou?

-O que aconteceu de urgência? Não vi nada de urgente na senhora, dona Veridiana! Faz só uma semana que lhe vi e a senhora estava ótima!

-Não viu, não? Então olha só isto, é o meu colesterol! Eu posso morrer com isso, sabia?-vi na Internet que vou enfartar e toda minha família é de médicos! Não adianta me enganar! Se eu enfartar a culpa será do senhor! E aqui está uma cópia da nova determinação do Conselho Federal

de Medicina sobre a norma de retornos aos consultórios.

-Dona Veridiana, isso não é urgência alguma, fique tranquila! Eu estava justamente no congresso estudando esse assunto, o seu colesterol.

-Ah é? Então estudou muito mau, doutor! E tem mais: vou lhe dizer como tem que administrar seu consultório: tem que atender retornos de urgência. Eu sei que o senhor ganha uma miséria, mas obrigação é obrigação. Aliás, o senhor sabe porque minha neta médica largou de atender no consultório?

Percebi que doutor João começou a enfartar...mesmo com o seu colesterol normal, mas, respirou fundo e respondeu educadamente, antes de derradeiramente expirar para o outro mundo:

-Ah, dona Veridiana, claro que sei, deve ser porque arranjou uma forma menos desgastante de se livrar da "miséria" para finalmente ganhar algum dinheiro!

-Algum não doutor, foi muito dinheiro, isso mesmo! Foi para a política e como se deu bem!.DINHEIRO! Isso mesmo! É o que conta nessa vida!

-É dona Veridiana, ela está mais que certa!

-E o que o senhor tem para me dizer?

-Eu tenho a lhe dizer duas notícias, uma boa e outra ruim: A boa é que senhora chegou aos oitenta com um colesterol que não tem urgência alguma. Infelizmente. A ruim é que aos oitenta anos a senhora já deveria ter desconfiado que o seu DINHEIRO não é tudo. Por favor, procure um outro médico para lhe acompanhar porque o seu DINHEIRO aqui não compra nada e nem ninguém. E não precisa acertar consulta alguma, porque o que seu convênio me paga, de fato é tão pouco, que nem irei perceber que não recebi. A senhora tem toda razão. Passe bem.

-Isso doutor! Gosto de médicos que trabalham por amor a arte. Por isso eu decidi que o senhor vai continuar a ser meu médico, sim! A doutora que me encaminhou falou para não largar o senhor! Que foi tão gentil comigo... e que não vai me obrigar a mudar de opinião.

Levantou-se e saiu a se despedir da secretária:

-Até logo querida, volto a ligar para marcar o meu próximo retorno.

**

Agora que estou aqui a relatar o que vi, confesso, ando meio preocupada com a saúde do meu amigo, o doutor João. Qualquer dia...ele pifa!

E quanto à arrogância: bem, todos têm algo a nos ensinar, e dona Veridiana me ensinou que alguns vícios do espírito são incuráveis. Médico algum dá jeito naquilo que o tempo, dito senhor de tudo, sequer conseguiu iluminar...

Pobres os que passam pela vida sem conhecerem sequer um pouco da riqueza das verdadeiras alegrias da alma.

Nota: Os nomes próprios são fictícios.