O PANAPANÁ
O som da sala toca o disco do Marcelo Jeneci, “Feito pra acabar”. Interessante título para um belo disco. Na amena manhã do domingo, meu pequeno quintal – que tem algumas plantinhas encostadas na velha cerca de madeira, além do pequeno pé de acerola e do pequeno pé de figo – foi invadido por um panapaná de pequenas borboletas brancas. Pequenininhas. Só o panapaná não era pequeno. Eram borboletas brancas, com um discreto contorno escuro nas bordas das asas. Feito garotinhas brincando de pique num lugar completamente novo, elas não paravam um só momento. De minha varanda, eu e Juliette assistimos àquilo por alguns minutos. Deus, o que poderia ser mais bonito que um panapaná? Os raios de sol, tímidos – porém brilhantes –, vindos por dentre as brechas nas nuvens que sobraram de um carnaval chuvoso... O amarelo do meu copo de cerveja bem gelada também chegou, em dado momento, a reluzir aqueles raios intermitentes ... Tudo era brilho naquele momento. Pois bem: era. Parece que a beleza é escorregadia. É tênue. É feita para acabar.
Minha mãe. A pragmática dona Emília provavelmente não acharia tão bonita a cena. Ela tem verdadeiro pavor de lagartas. Não tinha quando menina. Depois de adulta passou a ter. Ela diz que pode estar relacionado ao fato de que ela maltratava as bichinhas na infância. O fato presente é que se cada borboletinha daquelas julgar que nosso quintal é adequado para pôr seus ovos, teremos um “enxame” de lagartas. Nem sei se enxame é a palavra certa para o coletivo de lagarta. Talvez seja “praga” o correto. Sei lá. Uma praga de lagartas... Puxa vida. Como algo tão ruim como uma praga pode acontecer imediatamente depois de tão belo espetáculo? Mas assim são as coisas. No mundo a beleza é uma exceção. É por isso que tanto a admiramos. Se a beleza não fosse uma exceção, e fosse comum, banal, ela não nos encantaria, pois o que é trivial não encanta. Normalmente não. E tem mais. O gozo da beleza traz responsabilidades. A beleza do referido panapaná nos trará a responsabilidade de eliminarmos futuras lagartas, para que estas não destruam as plantas.
Quando se termina uma bela escultura, surge, a partir do momento da obra acabada, a responsabilidade de zelar-se por ela, protegendo-a da ação do tempo, da natureza e suas variantes (in) previsíveis, assim como dos desastrados que podem, num tropeço, quebrá-la. Precisa-se proteger a obra. Da mesma forma como Deus fez com Adão (???). Há muitos exemplos de responsabilidade advinda por se produzir beleza. Por exemplo, uma mulher que “decida” ser bonita jamais suportará assistir com resignação a perda da beleza diante do espelho. E quanto aos belos momentos de “amor” entre um homem e uma mulher que resultam em filhos que necessitarão de seus cuidados pelo resto da vida, provavelmente? Cuidar de filhos não é exatamente uma atitude contemplativa do belo. Contemplar a beleza da paternidade ou maternidade não ajuda muito quando o assunto é a proteção da prole. Criar filhos atinge níveis “estéticos” que estão para além do belo e do feio, se é que me entendem.
(Parêntese importante. Quando eu era pequeno e perguntava à minha mãe sobre os bebês, ela respondia: “é assim, meu filho, quando um homem e uma mulher se amam muito nasce um filho”. Esta foi, portanto – e posso garantir isso –, a primeira explicação que recebi sobre a origem dos bebês. Quer saber? Sou grato a minha mãe pela explicação. A ausência de beleza que presenciei depois disso, com o reconhecimento da realidade, não deixou, contudo, de ser um choque)
E há os apaixonados por pessoas (e coisas) com os quais não se poderá conviver. Coisas que estão no cinema, nas revistas, na televisão ou na casa dos outros. A beleza almejada está lá. O “start” da admiração foi dado dentro da tua cabeça. No entanto, aquela ou aquele que é objeto de tua admiração não necessita da tua contemplação. Não da tua. Neste caso, talvez a solução seja inventar novas belezas para se admirar. E, assim, construir novos problemas. E novas belas soluções... É claro que se começarmos a pensar que tudo é belo, daqui a pouco vamos viver num lixão comendo restos e vestindo trapos e achar aquilo bonito.
Em nossa sociedade do consumo, certas belezas têm seu preço. Aliás, transformaram a beleza em mercadoria. Ou será que teria sido sempre desta forma? Acho agora que sim, pensando historicamente. Beleza... Liberdade... Poder... Como poder e liberdade são coisas que se complementam e se necessitam, a posse da beleza, não raro, requer poder de compra, poder político e todos seus afins. Dinheiro e poder protegem e trazem felicidade. A minha solução para uma vida feliz deve, portanto, passar pelo entendimento de que não há “o poder”, como todos conhecemos e que está junto da grana, mas há, sim, outras formas de poder. Resta-me – filho da classe não-burguesa – a apropriação desse tipo de poder que não precisa de papéis-moeda, e, assim, conquistar as belezas da Terra, que por direito de cidadão do mundo, me pertencem. As belezas do mundo físico, das crianças, mulheres, amigos, pés de figo e panapanás. Conquistá-las, não para que sejam de minha propriedade, mas que o gozo da beleza que de tudo emana me seja permitido. Isso enquanto a revolução não vem. E, cá entre nós, felicidade e beleza são coisas para serem sentidas, não ditas.
*