Escaras de decúbito
Escaras de decúbito
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
- Carol, minha linda sobrinha, você que é uma moça aplicada nos estudos, me ajuda aqui a completar um questionário que o professor passou como trabalho valendo pontos para contrabalançar minhas notas.
- Questionário sobre o que, tio?
- Conhecimentos gerais. Trinta perguntas. Alguma coisa eu sei, já respondi, outras não faço a menor ideia.
- Se eu souber, vai ser massa, tio. “Manda ai...”.
- Esta aqui, por exemplo, tirei de letra. Mel na chupeta. Explicar o que é funâmbulo, dar exemplos de catacrese, e escrever dez linhas sobre a principal ocupação do agricultor.
- Dessa última,como o senhor respondeu?
- Que o agricultor mexe com agricultura, ou seja, ele trabalha a terra e a cultiva para a plantação.
- Legal.
- E o apicultor? Você sabe qual é o trabalho do apicultor?
- Embaçou tio. Nunca ouvi falar.
- Chuta.
- Apicultor? Apitos. Apicultor fabrica apitos.
- Apitos?
- É tio. Apitos para juízes de futebol apitarem os jogos, apitos para crianças assoprarem em festas, apitos para guardas de transito controlarem o engarrafamento...
- Fala sério, Carol.
- Não é isso, tio?
- Claro que não.
- A tá. Apicultura. Deu branco. “Tô ligada”.
- Se está ligada, responda.
- Madeira?
- Pelo amor de Deus, Carol.
- Cavalos?
- Não acredito!...
-...Galinhas?
- Fala sério! Carol. Apicultura nada mais é que a criação de abelhas. Quem cria abelhas é o apicultor.
- Foi mal, tio. O senhor não acha que seria mais fácil e prático chamar esse cara ai de abelhacultor?
- Abelhacultor?
- Isso, tio. Olha só: estou lendo aqui neste livro seu que o cafeicultor planta café.
- Certo.
- O suinocultor planta suínos.
- Que foi que disse Carol?
- Desculpe tio. Cria suínos. É que li errado.
- Ummmmmm!...
- O piscicultor, peixes.
- Na mosca.
- E o pecuarista se dedica a...
- A...?
- O senhor sabe...
- Não sei, diga o que está escrito ai no livro?
- Esse é o problema. Aqui não está escrito nada, mas o pecuarista se dedica a...
- Desembucha... Se dedica a...?
- Agora destemperou o caldo geral. O bagulho pegou feio, tio...
- Carol, que vergonha! Estou de queixo caído, estatelado, pasmo, boquiaberto, horrorizado. Pecuarista cria gado.
- Então, tio, foi o que eu disse: gado.
- Você disse?
- Sim!
- Complete, que tipo de gado?
-Gatos, cachorros, marrecos, gansos, patos cabritos, etc...
- Não entendo Carol. Seu pai mantem você nos melhores colégios, gasta uma grana com livros, professores particulares e você vem me dizer que a especialidade do pecuarista é criar gatos, cachorros, patos e não sei mais o quê?
- E eu estou errada, tio?
- Redondamente, Carol. Custo a acreditar que você desconheça coisas básicas do dia a dia. Estamos em pleno século 21, gozamos as comodidades da Internet, desfrutamos do cinema em 3D, do GPS, do celular, do carro que se locomove sem motorista, portanto, no meu entender, chega a ser inadmissível.
- “To ligada”, tio.
- Como é “estar ligada” se você não sabe que a pecuária engloba os equinos, os bovinos, os caprinos e os ovinos? Procure estudar mais, se dedicar com mais afinco, empregar melhor seu tempo... Deixa um pouco de lado esses programas medíocres que você passa o dia inteiro vendo na televisão... Até seu pai que fugiu da escola há mais tempo que eu, saberia responder mais de meia dúzia dessas perguntinhas idiotas que eu trouxe como trabalho para ajudar a melhorar minha nota.
Nesse momento, irrompe, sala adentro Barnabé Saião, pai de Carol.
- Falando no diabo, eis quem aparece! Aproveitando, Carol, que seu pai pintou na área, vamos tirar a prova dos nove? Olha como o que acabei de falar pra você tem procedência. Escuta só: Barnabé, qual a principal ocupação do cunicultor?
O gordo e suado Barnabé estanca os passos e encara o irmão e a filha:
- Essa eu respondo de olhos fechados, sem precisar pedir a ajuda de Carol.
- Deixa de enrolação e canta a pedra.
- Cunicultor, seus espertinhos, é aquele cidadão que lida com o cu das pessoas.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 58 anos é jornalista.