RÉU CONFESSO (REINCIDÊNCIA)

Série: Crônicas da Natureza

RÉU CONFESSO (REINCIDÊNCIA)

*ghiaroni rios

O que dizer de quem julgado e mesmo se considerado inocente volta a reincidir? Que as agruras, a vergonha e execração públicas não tiveram o efeito de ressocialização esperado! Que a pena, se cumprida foi pouca, não retribuiu o crime na mesma medida! Que faltou o antigo: olho por olho dente por dente, da Lei do Talião!

As tartarugas do Xingu (Podocnemis expansa) estão desovando e procriando como nunca. Ao contrário do Tracajá, outro quelônio (bicho de casco na linguagem direta do caboclo) que sai do rio para desovar em qualquer praia ou mato, aleatoriamente, a tartaruga, todas, desovam em uma única praia.

No baixo Xingu “era” no Tabuleiro do Embaubal. Por quantos séculos ou mesmo milênios não se sabe. A erosão natural provocada pela correnteza das águas do grande rio, depois de correr calmo por entre dezenas de ilhas da região, com seringais nestas ilhas, ganha força a se atirar na imensa baía de Souzel, foi rebaixando a areia da praia do Tabuleiro do Embaubal. Os ovos das tartarugas são chocados apenas pelo calor do sol na areia, mas as águas subindo antes “dos ovos nicarem” provocam sua perda e os filhotes não vingam, não nascem.

O ilustre representante do Ministério Público até que tentou impor que ONG da região, além de prestar contas, elevasse o nível da praia bombeando areia, mas em vão. As próprias tartarugas e seu instinto natural mudaram sua desova para praia ali pertinho, para a Praia do Juncal. Dizem que há congestionamento de mães sobrepondo ovos em mesma cova, pois a praia não é tão grande.

Temos notícias de desova com soltura de até 600 mil filhotes em único ano. Assim podemos imaginar, como leigos, que a espécie está com sua sobrevivência garantida.

Mas isto está mais parecendo uma Defesa Prévia!

Saborear uma carne de tartaruga continua sendo delicioso prato regional e impresso na cultura do povo Xinguara. A pesca artesanal da tartaruga é difícil, o anzol é sem fisga e a isca a fruta Mucajá e haja habilidade para pescar e “embarcar” nas leves canoas uma tartaruga grande, de viração. Sua carne, de textura leve e saborosa, é feita em diversos pratos que vão do cozido ao sarapatel dos miúdos, e a indispensável farofa no casco, com pedaços de filé e farinha puba amarela, única apreciada na região.

Experiências de criação da tartaruga em cativeiro já vão adiantadas, e mesmo que sejam de “granja”, mais mortais vão poder desfrutar de seus sabores sem peso na consciência.

Voltar ao Xingu depois de 20 anos não tem preço. Berço mágico dos 4 filhos, o primogênito cacique Raoni, que de lá veio com 8 anos, ficou deslumbrado. A pequenina cidade de Souzel, margeada pelo Xingu com brancas praias cresceu, mas não perdeu o encanto. Estranhamente encontrei mais oferta de peixes considerados nobres, como a Piraíba, o Pirarucu, Tambaqui e o tradicional Tucunaré.

Lance de sorte talvez, a cidade ficou abaixo da famigerada Hidrelétrica de Belo Monte e por isso, quem sabe, não sofra tanto os efeitos da barragem. Mas o que dizer da Volta Grande do Xingu, beleza única no planeta, que irá desaparecer para sempre? O preço do progresso?

Pescar (mariscar como dizem lá) “nas ilhas”, no Igarapé Tamanduazinho, que se confunde com o Xingu, na experiente companhia do Manoel do Maxico, da Rosa sua mulher e do João e Raoni, foi reviver bons tempos. O mosquiteiro adaptado à rede de dormir dentro do barco, dribla os enxames de carapanãs (pernilongos) e a barraca armada quedou abandonada na prainha na Ilha do Pteruçú.

O xinguara, a quem sempre elogiei como quem nunca fica sem pegar o peixe, seu alimento básico, usando muitas vezes táticas indígenas, incorporou mais uma que é a pesca com mergulho e arpão. O hábil amigo Souzelino mergulhou o dia inteiro em busca de peixes e vê-lo emergir com um baita tucunaré é cena de cinema.

E assim, para quem leu nossa crônica Réu Confesso, em que narro alguns de “meus crimes ambientais”, me perdoem, pois além de conviver com o altivo povo do Xingu, não resisti e “tive” que compartilhar com amigos o sabor de pratos a base de tartaruga.

Souzel-PA, agosto/2010

Fotos: Senador José Porfírio (Souzel), PA

*o autor é ambientalista/escritor

ghiaroni rios
Enviado por ghiaroni rios em 23/03/2011
Código do texto: T2865779
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