UM RÉQUIEM E UM BOLERO

Não sei como fui parar em João Pessoa.

Sim, sei: alguém, com “muita peninha” de mim, levou-me até lá. Eu tinha mergulhado num abismo escuro e uma pequena viagem poderia me fazer bem. Procurar lá fora um caminho que perdemos dentro de nós?

Das coisas que meus olhos podiam ver pouca coisa lembro. Uma orla movimentada num final de semana, o pré-histórico Hotel Tambaú adejando o mar. Casinhas miúdas no centro histórico – pois João Pessoa tem história e já foi mulher: chamava-se Filipéia.

Mas nos ancoramos em Cabedelo, cidade vizinha. Aqui matavam baleias às centenas, tem até museu dedicado ao mamífero, com restos de ossos e de arpões. (Eu quis dizer à guia: o arpão que me atingiu é maior que estes todos).

Com ou sem guia, continuávamos a viagem. Atravessamos o rio Paraíba e lá estava a Igreja de Nossa Senhora da Guia. Imponente como um rochedo, erguida com rochas do mar, com lágrimas de pescadores. À sua entrada, um cemitério exposto em cruel simplicidade. Cruzes, fitas, restos de flores, lápides toscas. A morte não precisa de luxo, pra quê? Em seu exotismo – alguém já viu um cemitério na porta de uma igreja? – os túmulos eram mais vivos que as orações lá dentro do altar, renovados em gerações e gerações, a ceifa não cessa.

Diante das pedras escuras de Nossa Senhora da Guia eu resgatei minha bússola. Eu tinha entendido por que tinha vindo, e vi que certos desencontros só apontam para a liberdade. Meu barco afundara no mar das tormentas, no entanto eu sobrevivia, agarrado num minúsculo destroço de esperança.

Minha visita a João Pessoa estava encerrada. Nas fotos da Fortaleza Santa Catarina abri os braços e dei adeus a mim mesmo. Em pensamento dei adeus ao meu acompanhante, porque mesmo estando próximos, habitávamos galáxias diferentes.

Ali, onde o sol chega primeiro nas Américas, diz o slogan turístico. Ali, a segunda cidade mais verde do mundo (até hoje esqueci de perguntar qual é a primeira). Ali, sentado na beira do rio, vendo minha tristeza dissolver-se lentamente...

Gostaria de ter visto mais. Sei que a Paraíba é linda. Não vi a Baía da Traição nem a Pedra do Ingá. Mas quem sabe eu retorne, Dona Filipéia.

E assim despeço-me mais uma vez. Estou sempre a despedir-me de lugares e pessoas.

Final da tarde, turistas e citadinos aglomerados na Praia do Jacaré para ver um homem tocando o Bolero de Ravel dentro de uma canoa deslizando poeticamente. É a tradição do lugar. Tiram fotos e dizem “é lindo”. Depois o sol esconde-se nas águas. Depois voltamos para casa.

Depois nunca mais fui o mesmo. A sensação que naquele verde que ti quiero verde eu deixei uma fitinha e uma flor no túmulo de um Raimundo.

Sim, Drummond, ser dono do mundo seria só uma rima, não uma solução. Porque ser dono do meu destino já me toma tempo demais. Talvez o tempo de uma vida inteira.

Raimundo de Moraes
Enviado por Raimundo de Moraes em 28/06/2005
Código do texto: T28631
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