O espetáculo das andorinhas

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM http://dacarpe.wordpress.com

Certa vez chegava à universidade para a pós e ao entrar no campus, bem no campinho de futebol, à luz do sol vespertino, um amontoado de andorinhas voavam exaustivamente. Se misturavam de tal forma que era impossível contá-las ou acompanhar um dos voos solitariamente. Era como uma dança, bela e confusa, hipnotizante e de certa forma amedrontadora. Andando, com o tempo ao meu encalço, assistia ao espetáculo pasmado. Até que percebi que nenhuma das andorinhas, absolutamente nenhuma delas, emitia som algum. Todas dançavam caoticamente sem canto. Percebi, subitamente, que aquele espetáculo raro, o dançar esvoaçante das andorinhas, tinha perdido a graça. Pássaros não voam somente, eles também cantam. E sem seu canto aquela cena não era mais tão bela.

Mais tarde, refletindo sobre o espetáculo das andorinhas, me veio à cabeça que, de alguma forma, aquilo poderia ajudar-me a refletir sobre o estado atual da Escola. Pensei nas andorinhas como os alunos, autores e atores de um espetáculo mudo. À primeira vista um espetáculo belo e encantador, ainda que adolescentemente caótico; porém, mais tarde, mudo, cerrado de voz e assim desnudado, perdido de todo o seu encanto. Hoje a Educação cala, emudece. O professor acaba sendo um agente, muitas vezes inconsciente, deste processo que cala a poesia e só ouve uma voz rouca e rascante.

Para parte da Pedagogia, que gosta somente de ouvir o grito, a mudez passa despercebida e só se enxerga o caos. Vence, portanto, a superficialidade suprema da visão. Mas a visão é um sentido dado. Para ouvir a voz da poesia que o aluno canta é necessário um ouvido educado para isso. E neste sentido acho que nós, educadores, em grande maioria, não o temos. Não o temos e não nos esforçamos para o ter. Achamos que somos o meio do processo educativo, o meio pelo qual a educação se dá, e então nos sonegamos a audição. Penso que estamos errados.

Estamos errados, no mínimo, duas vezes. Primeiro por que a audição, sentido que requer concentração que requer silêncio que requer paciência que requer humildade, é o que permite que o outro entre em nós, invertendo o processo educativo tradicional, fazendo com que este outro, o aluno, seja também ator de sua própria educação. Mas acho que o maior erro está em acharmos que o ouvir é somente algo exterior. Não! O ouvir é sempre de dentro de nós. Penso que ouvir necessita de um conhecimento interior muito grande.

Falo de ouvir numa situação de referida mudez. Se percebemos, como educadores neste modelo escolar dado na sociedade atual, somos engenheiros da mudez. Fabricamos e talhamos cordas vocais. Tudo o que fazemos, como disse anteriormente, aponta para o emudecimento das vozes dos principais atores-personagens do processo educacional: os alunos. A Escola, em seu conteudismo cego, impede a voz de quem mais tem que falar. A disciplina burra paralisa a dança e também emudece. O modelo calcado em um tradicionalismo racionalista vazio de sentido se perde na atualidade e acaba destoante dela. Bom, pelo menos a realidade que eu percebo como professor-educador é a de um aluno que, independente das situações familiar, social, cultural, religiosa etc., chega com o corpo rebelde, a mente confusa e, principalmente, o espírito atrofiado. E este modelo educacional pretende cuidar somente da mente, quando muito, em raríssimos casos, também do corpo; mas nunca do espírito.

A cultura racionalista do século XIX nos convenceu de que somos razão, e nos reduziu quase que somente a isso. Ficamos, desde então, atrofiados de alma. A rejeição positivista de determinadas subjetividades humanas nos tornou menores do que, em verdade, somos. Somos uma complementação dialética constante, creio, entre mente, corpo e espírito. E por espírito me refiro às instâncias a que nem o físico e nem o racional alcançam plenamente: os sentimentos, as emoções, o autoconhecimento etc. A escola, no modelo atual referido, cala o espírito em detrimento da razão. Aliás, se bem prestarmos atenção no seu discurso tradicional, esta é uma de suas principais tarefas: emudecer a sensibilidade da alma humana. Seja pela sua negação, seja pela sua exclusão, não admitimos a sensibilidade espiritual, ainda confundida com religiosidade.

O ensino de história tem, a meu ver, um espaço privilegiado para o desenvolvimento da espiritualidade do aluno como “disciplina do tempo”. Se considerarmos o conceito junguiano de inconsciente coletivo, a história pode ser o espaço de resgate de um inconsciente que foi emudecido pelo turbilhão da modernidade, no dizer de Marshall Berman. A pedagogia Waldorf fala, inclusive, da possibilidade de se trabalhar os mitos antigos e as histórias fantásticas como uma forma de resgatar este inconsciente e seus valores intrínsecos de espiritualidade que a modernidade racionalista conscientemente apagou. O Homem transformado no cogito cartesiano pode ser reestruturado como ser tríplice de mente, corpo e espírito através de um resgate do indivíduo total. E acredito que o ensino de História tem um papel fundamental nesta tarefa ao rediscutir o tempo.

A tarefa é árdua. Penso que não só ensinar o canto às andorinhas, mas também ensinar aos seus admiradores a ouvirem-nas. Não só ensinar os alunos a se expressarem na direção do autoconhecimento e do aprendizado do mundo, mas também ensinar os professores a perceberem toda esta movimentação. Ao contrário do que se apregoa em altos brados, penso que mais importante que falar, neste momento, é ouvir. Talvez não tenha sido as andorinhas que eram mudas, mas eu que era surdo.

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Dacarpe
Enviado por Dacarpe em 20/03/2011
Código do texto: T2860676
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