JOHNNY WINTER, O ALBINO DO TEXAS

But he could play guitar like ringing a bell...
(Em "Johnny B. Good" - Música clássica do século XX)


A plateia estava toda de pé, da última fila ao gargarejo, batendo palmas e pedindo bis. Os seguranças tentavam em vão fazer-nos retornar às cadeiras, mas nem dávamos atenção a eles. De repente, as luzes apagaram-se, e o velho mago retornou detrás das cortinas, dessa vez com sua guitarra "V shape" e o slide no dedo. Ele sentou-se quase ao alcance das nossas mãos e agradeceu com o mesmo sorriso tímido do menino de 13 anos, que nos anos 1960 dizia a todos que um dia tocaria com Muddy Waters. Ele contou até quatro e a última coisa de que me lembro foi que o mundo desabou, não por causa das forças da natureza, mas desconstruído no contato do aço das cordas com o gargalo de um garrafa de whiskey...


Atlanta, numa tarde de outono. Eu venho do dentista por um caminho que nunca uso por causa do trânsito terrível. De repente, dou uma olhada à minha esquerda e meu olhar fixa-se nos letreiros do teatrinho anunciando Johnny Winter, o guitarrista albino do Texas...Que sorte, penso, tantos anos aqui e não havia encontrado Johnny, um dos meus heróis na música, um dos maiores guitarristas de todos os tempos. E agora, já com a passagem comprada de volta ao Brasil, esbarro no anúncio de um show dele. Tenho a certeza de que aquilo é um presente dos deuses do Rock e do Blues!


O show acontece numa noite de quarta-feira e, já no bar do teatro, conheço uma daquelas figuras que sempre encontramos nesses tipos de eventos: ele é um "senhor" com um certo ar de louco, com seus sessenta anos de idade, botas, calças jeans e jaqueta dos "Hell's Angels". Ele logo engrena um papo sobre os bons tempos dos anos 60 e 70, quando assistiu a alguns "showzinhos" básicos, tipo Led Zeppelin e Cream, até Stevie Ray Vaughan nos 80! Eu já estou acostumado àquele tipo de relato e já nem fico mais incrédulo. Já são tantas as pessoas que eu tenho conhecido e que contam as mesmas estórias de Rock e Blues e shows alucinantes! Ele nos conta que se aposentou da indústria automotiva e agora só toca guitarra nas jams da cidade... Um plano de aposentadoria nada mau, fico sonhando...


Estou no show com um casal amigo e sentados na terceira fila. Estamos ali nos revezando na busca das cervejas e assistindo ao show de abertura, enquanto eu tento "doutrinar" meus amigos contando estórias de Johnny, de como ele colocou o nome nas enciclopédias de Blues e Rock, desde tocar em Woodstock até produzir e tocar com Muddy Waters, o rei do Blues em Chicago, que o chamava de filho. Em 40 anos de carreira, ele continua fiel às raízes, sem nunca abandonar o Blues e seu neto querido, o Rock'n Roll.


Enfim, a banda entra e começa a botar a casa abaixo. No meio da música, ele surge, aquela figura fantasmagórica, tatoos por todo o corpo, cabelos longos e branquíssimos, um chapéu enorme, empunhando sua amiga guitarra "Firebird"! Para minha surpresa, ele precisa de um guia para chegar até o microfone e - penso em voz alta: "Uau, o cara já entrou carregado!", ao que meu amigo dispara com um olhar de reprovação: "pelo amor de Deus, Roberto, o cara é cego!". Caramba, aquela foi terrível, mas eu não sabia que ele era "legalmente cego", como dizem, de tão pouco que enxerga!


Mas que diferença faz, se ele é cego ou não, se os dedos voam a todo lugar que ele manda? Ele mantém a plateia hipnotizada durante todo o show, especialmente nos blues mais lentos, quando ele busca grunhidos que só Deus ou o diabo sabem de onde, e realiza solos apocalípticos. O velho Merlin, apesar da fragilidade física, continua senhor absoluto da guitarra e, cada vez mais, vou afundando na cadeira, de cabelo em pé, amaldiçoando a ideia de ter sentado em vez de ter ficado perto do bar...


Chega o fim do show e, numa daquelas esquisitices nos EUA, a plateia fica super comportada, com todos confortavelmente sentados...Era só o que faltava, penso, venho pra um show do Albino, numa oportunidade única na vida, e o povo parece que está num concerto de música clássica! Talvez eles já tenham visto tantas vezes que ficaram acomodados, deve ser. Quando tudo parece terminado, já demorando muito para um bis, alguém tem uma ideia revolucionária naquela pasmaceira: um louco, aparentando uns sessenta anos de idade, de botas, calças jeans e jaqueta dos "Hell's Angels" dispara em direção ao gargarejo batendo palmas e gritando de uma maneira ensandecida! Meus amigos me olham com um ar de total perplexidade, mas, ao mesmo tempo, como que esperando por instruções... ao que eu nem pestanejo: "sigam aquele doido"!!!. Num segundo, estamos saltando das cadeiras atrás do cara! Podem até acusar os brasileiros de terem bagunçado, mas não fomos nós que começamos! Justamente quando apoio meus cotovelos no palco ao lado do velho Hell's Angels, as luzes se apagam e o bruxo surge por trás das cortinas, de volta com seu guia...


Após o show ainda fomos a um boteco lá perto comemorar a noite, felizes por termos visto de perto o albino Johnny Winter, que entrou para a história porque, pelo menos para ele, tocar guitarra era algo tão fácil quanto tocar uma campainha!
R Leite
Enviado por R Leite em 19/03/2011
Reeditado em 06/03/2014
Código do texto: T2857158
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