OPERAÇÃO RESCALDO
OPERAÇÃO RESCALDO
O último repicar do tamborim da bateria da Beija-Flor anunciou o fim do segundo dia de desfile das escolas de samba no carnaval no Rio. Em que pese os preços exorbitantes dos ingressos, o folião carioca demonstrou mais uma vez a sua paixão pela cores da sua escola e lotou as dependências do sambódromo durante as quatro noites quase sempre chuvosas.
Quanto ao espetáculo em si, os desfiles de domingo e segunda foram praticamente um repeteco do que vimos em 2010, inclusive pelo destaque dado às comissões de frente. No mais, carros gigantescos, sambas sem empolgação e descaracterizados, enredos sem criatividade e excesso de figurantes. O que poucos sabem é que a quantidade de alas de cada escola é praticamente inalterada, independentemente do enredo escolhido, obrigando o carnavalesco a se virar para adequar o tema a todas as alas, contemplando cada uma com um quinhão da história a ser desenvolvida.
Por tais razões, a fantasia por mais bonita e bem feita não consegue se destacar numa multidão de componentes rigorosamente iguais, apertados e forçados a desfilar no anonimato, pois desaparecem sob a massificação de plumas e adereços. A única ala que foge à regra é a das baianas e não podia ser diferente, pois a base circunférica da própria fantasia exige espaço próprio e a componente consegue evoluir (girar) sem ser molestada.
Os jurados, assim como eu fãs ardorosos do Roberto Carlos, deram a vitória à Beija-Flor, prestando um tributo mais que merecido ao Rei, mas é induvidoso que o desempenho da Escola de Nilópolis frustrou a expectativa do público, simplesmente porque não se permitiu ousar, reduzindo o brilhantismo daquele que, segundo a mídia, é o “Maior Espetáculo da Terra”. Daí entender que o desabafo do Diretor Laíla, após a vitória, de que ele faz carnaval e o Paulo Barros faz espetáculo, não está em consonância com o pensamento daqueles que apreciam, difundem e comercializam o evento.
Sou um taurino saudosista e conservador em muitos assuntos, mas com todo respeito ao Laíla, o sambódromo foi construído e preparado para ser o palco e a vitrine onde o nosso produto é exposto e oferecido para o turismo de todo o mundo. Portanto, o desfile requer espetáculos cada vez mais empolgantes e que prendam a atenção de quem está presente ou assistindo em casa pela TV. Não há mais lugar para a mesmice, já chega o Bola Preta. Hoje, o que enche os olhos, agrada os ouvidos e desperta a curiosidade do público é a empolgação do samba, a performance da comissão de frente, a imponência dos carros e a beleza física das rainhas da escola e da bateria, descartados os passistas porque são uma espécie em extinção.
É duro dizer e cruel a constatação, mas nada mais cansativo e insosso do que a patética exibição dos casais de mestre-sala e porta-bandeira. É quase torturante a galera ter que assistir 36 a 48 casais nas duas noites (cada Escola tem no mínimno três), quando o que se vê, a rigor, é uma baiana estilizada girando continuamente, empunhando a bandeira da sua agremiação (cujas cores quase sempre destoam do seu traje), cercada e paparicada, indefinidamente, por um passista saracoteando na ponta dos pés, cheio de quás-quás-quás, muito mais preocupado em desviar a cabeça da bandeira para não perder o chapéu.
Sei que meus comentários são ácidos, contundentes e descontentam milhares de sambistas fiéis, apaixonados e zelosos pela preservação das tradições seculares e das indestrutíveis raízes das suas Escolas, nada disso me apraz, mas o que fazer. O tradicional só deve ser mantido e conservado quando é bom, saudável, tem qualidade ou não causa nenhum tipo de prejuízo. Não comer carne na sexta-feira santa, não passar sob escadas, comer romã na passagem de ano, iniciar a caminhada com o pé direito e tantas outras, são alguns exemplos. Ao revés, temos o inconsequente trote de calouros nas universidades, o costume desastroso de soltar balões, a abominável corrida de touros nas ruas de Pamplona, na Espanha, a malhação de Judas. Estas são tradições que infelizmente se perpetuaram no tempo.
No samba, os mestre-sala e porta-bandeira de hoje eram, respectivamente, os baliza e porta-estandarte de ontem. Sem qualquer ironia ou trocadilho bizarro, a própria Escola Tradição, formada por dissidentes da Portela, desfilou no Grupo “B”, o que denota que ao optar pela dissidência a Tradição abriu mão da qualidade.
Incontestavelmente, a Beija-Flor perdeu a grande oportunidade de ganhar convencendo, com categoria, “simplesmente” por não saber explorar e garimpar o rico filão musical do repertório do Rei. Cada sucesso de Roberto Carlos é um prato cheio para qualquer enredo, pois todas as suas músicas têm início, meio e fim e, não raro, expressam a sua própria história de vida.
Então, meu caro Laíla, compreenda que a vitória da Beija-Flor independente de ser um ato de amor ao Roberto Carlos (ele bem que mereceu), foi uma agressão, um repúdio ao novo, ao inusitado, ao imprevisível. Queira Deus que os demais diretores ou carnavalescos não sigam ou adotem a sua estratégia, caso contrário teremos, inevitavelmente, a volta do romantismo dos saudosos ranchos, cujos enredos lembravam as doces e ternas serestas de Conservatória. Aí, veremos a grande e iluminada passarela do samba transformada na versão apoteótica e colorida da aconchegante, nostálgica, bucólica e hospitaleira cidade.