Orgulho de ser neta de Dona Tereza.
 
 
Verdade.
Não conheci meus avós paternos, mas tive a felicidade de conhecer os maternos.
Já escrevi uma crônica sobre meu avô João, quem leu sabe e talvez tenha pequena noção de quem ele foi, homem forte, desbravador de terras praticamente selvagens..
O oposto era sua esposa, Tereza. Minha avó materna.
Filha mais velha de uma família aparentada de seu futuro marido, dona de uma meiguice indescritível, criada no mais rigoroso regime patriarcal.
Mulher alta, traços delicados, pele morena clara e cabelos castanho.
Casou cedo, teve quatorze filhos, dois partos de gêmeos que não sobreviveram. Todos nasceram de parto normal como era costume na época, sempre acompanhada pela parteira uma empregada e pelo marido.
Ela contava que na hora do parto se sentava na beira da cama, de costas para o marido que ajoelhado na cama passava os braços sob suas axilas e a sustentava na hora da criança nascer. Ele esteve presente em todos os nascimentos e fazia questão de dar sempre o primeiro banho no recém nascido.
Ela criou dez filhos, cinco mulheres e cinco homens.
Filha de fazendeiro de família bem posta e tradicional, foi criada na cidade. Depois de casada sua vida mudou, foi para o campo, mais precisamente para fazenda com meu avô João.
Ela dizia que depois da primeira rusga que teve com o marido, correu para a casa do pai para buscar apoio e se queixar do problema...
Imediatamente seu pai a devolveu ao marido com a recomendação de que meu avô cuidasse de “segurar e tratar bem” a esposa, a filha dele! Está claro que ela nunca mais buscou apoio, e o marido respeitou as ordens do sogro. (Não respeitasse para ver...)
Interessante naquela época quando alguém mais velho “recomendasse” ou desse uma opinião sobre algum assunto, mesmo particular, era como se fosse uma ordem a ser obedecida pelos mais novos (tinham juízo!). As palavras tinham muita força e me parece que o olhar também!
Tereza não gostava de trabalho caseiro, nunca se aproximou de um fogão nem de vassoura, sempre teve empregadas a seu dispor.
Sua vida se resumia a costurar e bordar a mão as roupinhas do futuro filho, pois sempre estava chegando mais um... Escondia as roupinhas o no seu quarto, os outros filhos nem percebiam que iriam ter mais um irmão.
Bordar roupas de cama e mêsa, toalhinhas para enfeitar os móveis e principalmente verificar se as roupas do marido e dos filhos estavam em ordem para o passeio de fim de semana na casa da cidade.
O marido usava ternos de linho engomados e passados com maior capricho, as meninas com vestido de babadinhos e fitas no cabelo, os meninos sempre de camisas brancas engomadas. Ela de saia longa de seda, blusa de renda, faixa na cintura e sapatos de saltinho.
Na cidade os passeios eram sempre os mesmos.
O marido levava a mulher e as meninas na costureira, para visitar algum parente, ir à missa, dar uma volta no jardim e tomar sorvete.
Os meninos viravam a cidade de pernas para o ar.
Depois de proporcionar estes passeios à família, ele ia conversar com os amigos, tratar de negócios, saber as ultimas novidades e fazer compras no mercado.
A tarde era a hora dele se divertir.
Tocava rabeca e seu irmão Arthur, tocava piano e violino, iam como ele contava “animar a função”, imagino que seja um tipo de baile.
Minha avó ficava em casa cuidando dos filhos e conversando com alguma visita, geralmente parentes.
Quando perguntei por que ela não o acompanhava respondeu com a maior naturalidade, que o vovô precisava se distrair, pois trabalhava demais, e precisava ter um pouco de alegria também. Lugar da mulher era em casa com os filhos. (palavras dela)
Fiquei pensando... Ahhhhhhhh se fosse hoje!
Os filhos são “terceirizados”, sai o maior arranca-rabos quando o marido quer se encontrar sozinho com os amigos, tomar umas cervejas e falar “bobagens”, jogar conversa fora!
Quem será que tem razão, a vò Tereza ou as mães atuais?
Nem ouso refletir muito sobre o assunto muito menos dar opinião... Deus me livre!
Na segunda-feira assim que o dia clareava voltavam para a fazenda, deixando na cidade uma empregada para tomar conta da casa.
E a rotina se restabelecia.
Uma vez por mês, passava na fazenda um senhor de origem árabe chamado Raphael, vendia tecidos, roupas de cama e mesa, sapatos, era o mascate, mal falava português.
Minha avó escolhia a mercadoria, ele almoçava na casa juntamente com a família por que era muito amigo de meu avô.
Ainda hoje conservo a amizade com seus descendentes
Minha melhor e mais querida amiga é a neta de Sr. Raphael.
Estamos na quinta geração de uma amizade mais que sólida, afeição assim se tornam parentesco,valem ouro.
Mas voltando a Vó Tereza.
A vida corria na rotina conhecida de sempre, mas de repente...
O marido chega com a noticia, ele viajaria para conhecer outras terras que estavam sendo vendidas bem barato, num lugar distante, eram terras para desbravar, tinha apenas floresta e nenhum recurso próximo.
Apenas comunicou e viajou.
Depois de algum tempo voltou com a noticia.As terras eram ótimas, ele havia comprado por serem muito barato, era muita terra por pouco dinheiro, portanto dentro de alguns meses iriam se mudar definitivamente, inclusive ele já havia vendido a fazenda onde moravam.
Ela surpresa não questionou.
Iniciou os preparativos, tinha que arrumar a mudança para despachar pela estrada de ferro.
 Os filhos solteiros, os casados com as respectivas famílias, os empregados muitos deles com algum problema físico (buscavam abrigo na fazenda e acabavam ficando), e alguns animais embarcaram numa viagem longa.
Ela se despediu de sua família na certeza de que não os veria mais.
Depois de alguns dias de uma viagem sofrida, chegaram num povoado cheio de poeira sem o mínimo conforto.
Foram morar numa chácara, demoraram bastante para deixar a casa habitável.
Era tudo muito diferente, a avó contava que a tardezinha ia para a varanda chorar de saudades da vida anterior e dos parentes que tinha deixado tão distante, mas o marido nunca a viu chorar.
Quando estava se adaptando aconteceu algo inesperado...
Alguns meses depois seu filho mais velho contraiu febre amarela e faleceu aos vinte e três anos. A nora voltou para sua cidade de origem levando seus netos. Foi uma tristeza enorme, a perda do filho e o distanciamento dos netos. Ela sofria calada.
Tudo o que escrevo me foi relatado por ela.
Eu sentia por ela um enorme carinho, seu sorriso lindo, uma pessoa muito alegre. Sempre muito elegante com roupa e cabelos impecáveis, unhas sempre esmaltadas, meias de seda e sapatos de salto não muito altos. Tinha um porte muito bonito.
Muitas vezes eu fugia para não encontrá-la porque ela gostava de pegar os netos para dançar, eu precisava brincar não tinha tempo para danças...
Meu avô ficava na fazenda e ela na cidade, algumas vezes ela ia para fazenda, geralmente quando os netos iam “infernizar” a vida do seu marido.
Certa vez fui visitá-la na cidade, quando ela abriu a porta quase desmaiei. O som estava ligado alto, até aí tudo bem isso era normal...
O choque foi visual...
Estava na moda pintar as paredes internas de colorido, pois bem, ela pintou cada parede da sala de uma cor, vermelho, verde, azul e amarelo, cores bem forte!Doía na vista...
As poltronas estampadas de verde com desenho de coqueiros...
Ela estava orgulhosa e feliz com sua decoração! Sempre foi meio hippie...
Pelo menos o jardim se salvou, estava  maravilhoso com muitas flores coloridas, (ela sempre gostou de cores) que cuidava com maior carinho, a horta bem cuidada, com as plantas verdinhas... Era lindo! u.
Notei que seus óculos estavam cheios de pintinhas brancas, não sei como ela ainda conseguia enxergar. Pedi para lavar seus óculos,ela me informou que as manchas só sairiam com álcool. , eu quis saber por quê... Era laquê!
A cosmética havia acabado de lançar o produto que era pura cola e breu, ela sempre vaidosa mais que depressa passou a usar, mas colocava aquela cola no cabelo duas a três vezes por dia, o cabelo virava um capacete de tão duro e os óculos ficavam uma lastima! Mas ela estava feliz com a nova invenção...
Nas férias escolares, quando ia visitá-la, ela me chamava escondido dos outros netos e me levava para o quarto. Trancava a porta, me fazia sentar na cama, colocava um guardanapo bem branquinho no meu colo e tirava do fundo de um enorme baú, alguma coisa enrolada num pano cheio de bordados. Era um biscoito.
O tal biscoito tinha sido feito meses antes, no momento parecia mais um pedaço de pau. Prevenida ela já tinha preparado uma enorme caneca de café com leite, doce “pra valer”. Diabética, insulina dependente quando nos via comendo algum doce sempre pedia uma “isquinha”(como ela dizia), mas em apenas uma mordida levava mais da metade do doce....Que “isquinha” enorme. Coitada, agora entendo...
Prece que vejo seu rosto feliz me dizendo:
-Guardei especialmente para você, come filha, está muito bom, molha ele no leite.
E eu molhava e comia achando horrível, mas jamais iria dizer não a tal carinho, e ao presente tão especial...
Saiamos do quarto, ela toda feliz e eu meio enjoada com tanto açúcar.
Íamos para a sala dançar...
A tardezinha ela acompanhada de uma empregada ia à casa de sua comadre conversar e depois seguia para “jardim” da praça da igreja apreciar o “movimento”. Voltava para casa contente com o passeio.
Era uma pessoa feliz.
Rezava o terço que ela chamava de rosário, toda tarde, a gente se divertia quando ela derrubava o terço e xingava “Ô ruzário maldiçoado”, “Ô peste!”, pode alguém ter tanta religiosidade e ao mesmo tempo xingar um terço???
Infelizmente, morreu no hospital quase aos oitenta anos, sem nunca mais ter visto ninguém de sua própria família, mas cercada de carinho e amor de seus filhos e netos.
O marido quando recebeu a noticia imediatamente foi para a cidade, ao chegar pediu que os filhos saíssem da sala onde ela estava sendo velada. Queria ficar a sós com ela.
Fico imaginando a “conversa” que ele deve ter tido com quem não podia mais responder, as lembranças, os erros e acertos, agradecimentos, pedidos de perdão e contas a ajustar, que devem ter se passado pela sua memória durante a noite.
Saiu do quarto quando o dia amanheceu.
Com os olhos muito vermelhos, se despediu de todos e voltou imediatamente para a fazenda, não assistiu ao sepultamento...
Lembro com saudades do biscoito horrível, das musicas e das danças, principalmente de seu sorriso espontâneo e inocente de uma pessoa que nunca soube o que era maldade...
Vou parar por aqui, estou emocionada demais desejando que o tempo voltasse atrás para receber aquele carinho gostoso que só as avós sabem dar, aquele colo macio e quentinho...
Obrigada por ter sido minha avó e desculpe alguma rudeza de minha parte que faz triste contraste com sua meiguice.
É Tereza, você faz falta na minha vida, onde estiver receba meu beijo...
 
 
M.H.P.M.
 
 
 
 
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