Crônica

Eu a vi pela primeira vez num desses becos escuros, à meia luz de uma claridade que teimava em iluminar os lugares mais obscuros.

Estava encolhida como uma criança no útero da mãe e no rostinho vinham os traços do sofrimento.

Trajava uma roupinha encardida , dessas que nem as lavadeiras do morro pegavam mais para lavar.

Tinha nos olhinhos azuis escuros tal doçura que há muito tempo, eu em minha pouca idade nunca antes tinha visto.

Chorava.

Incrível que só aos poucos pude ir vendo que daqueles olhinhos lindos iam brotando lágrimas tão cristalinas e puras quanto o seu meio-sorriso amarelo.

Seu nome? Não sabia. E não pude sabê-lo porque não tive coragem o suficiente para indagá-lo. Não importava. O que contava naquele momento de descoberta era apenas o tempo para que eu ficasse a admirá-la. Não como um desses mendigos de rua com os quais me vejo esbarrar quase todos os dias, mas como uma simples garotinha que dentro dos seus prováveis seis, sete anos já caíra em uma das armadilhas insanas da vida.

Ela simplesmente era mais uma das vítimas da pobreza dessa cidade.

Mais uma que a todo momento estava sujeita aos olhares curiosos das outras crianças ou aos insultos daquelas pessoas que se diziam bem nascidas e achavam que crianças como aquela só serviam para poluir a paisagem da cidade. Que paisagem? Talvez se referissem ao espaço privilegiado que pensavam ser de exclusividade delas.

Mas a garotinha não entendia

Não procurava ver tudo pelo lado ruim da vida. Apenas sonhava com fantasias. Não brincava como as outras crianças, apenas sonhava.

E dentro desse sonho pensava estar no colo de sua mãe, embalada para dormir.

Eu , na minha condição de ser humano comum não podia fazer nada para que aquela criança de olhar meigo pudesse ter um pouco de felicidade.

Eu simplesmente era um ser egoísta como todos os outros que por ali passavam. Simples transeuntes que tinham mais a fazer do que se preocupar com uma simples órfã.

Eu podia ter a alma um pouquinho mais leve, talvez devido à pouca idade, mas era ou seria como os outros.

Onde a vida deles se limitava aos seus próprios problemas eu tentei, em vão, colocar na minha cabeça que um dia poderia ser diferente. Diferente dentro da minha própria condição de ser e talvez aparecesse outra criança a quem pudesse ajudar. E o faria como alguém que oferece uma rosa , e não como alguém que tenta assim ganhar um lugar de destaque na sociedade ou no céu.

Eu teria no pensamento a certeza de ter amparado um desprovido e me sentiria feliz. Feliz como nesse momento que simplesmente vivo.

Para alguma coisa e na certeza de que a minha existência não é mero acaso.

Mas deixando de lado as boas atitudes e a vontade de ser alguém diferente eu simplesmente ajeito os meus cadernos no peito, finjo não ver uma lágrima que muitos considerariam como fraqueza e vou para o colégio.

Deixando para trás aquela criança e pensando em outros momentos que poderão pedir minha presença.

Rita Venâncio

Rita Venâncio
Enviado por Rita Venâncio em 17/03/2011
Código do texto: T2853687
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