¿ Humanos

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Aprendemos a ser humanos rápido demais! Será que em algum dia no futuro aprenderemos a ser bichos?

Somos demasiado humanos quando matamos por prazer – característica imanente ao homem; somos demasiado humanos quando deixamos rasto de destruição por onde passamos – somos os únicos habitantes do planeta a possuir esse ‘instinto’. O homem, o bicho homem, mata por prazer, por maldade; os demais bichos matam para não morrer e apenas agridem quando se sentem ameaçados. O homem é demasiadamente mau; mas o mesmo homem é demasiadamente bom! Pena que as boas ações se diluem ao vento; as más, todavia, parecem nos causar mais frisson , frenesi – gostamos do teatro e da encenação, pois somos as máscaras disformes do que o espelho não consegue revelar atrás do foco, pois mesmo depois de quebrado, ainda assim, a imagem formada estará atrás do espelho, reclusa, sorrateira , pronta para refletir a realidade aparente.

Outro bicho, durante seu processo evolutivo, conseguiria, primeiro: desenvolver-se tanto a ponto de tocaiar semelhante para esfaqueá-lo, queimá-lo vivo, ou arrastá-lo por quilômetros preso a um veículo e depois, cinicamente, sorrir diante de alucinadas câmeras de televisão como se nada tivesse acontecido? Pior ainda: conseguiria, diante dessas mesmas câmeras, sorrir, dando tchauzinho e fazendo pose, em detrimento do lívido, desfigurado e desfalecido corpo, como se nada tivesse acontecido?

O corpo inerte junto ao chão apenas servirá de alimento para bactérias decompositoras. A seiva de vida suplantada pelo covarde algoz não tem nenhum outro propósito doravante.

Ele morreu porque era a hora dele – diz D. Zuleica, costureira de 54 anos, chefe de família, ao observar o noticiário. – ‘Será?’

O repórter, comentando os fatos, improvisa um discurso: temos que aceitar resignadamente os infortúnios da vida e a taxatividade da morte? Por que somente para os parcos momentos de felicidade é que existe a obrigação do comedimento? Os pássaros não reservam o alimento do dia seguinte – vivem do que lhes é suficiente para o agora; os peixes agem da mesma forma, levando a sério o brocardo ‘o pão nosso de cada dia nos dai hoje’... Em sendo todos eles ‘analfabetos’, como praticam sem conhecer? ‘Felizes e abençoados os que acreditam sem ver’... E os que praticam sem o saber, principalmente! O homem, o bicho homem, confunde cultura e conhecimento.

Depois das colocações, o velho comunicador inicia o anúncio do novo e milagroso emagrecedor que torna a mais rechonchuda gordinha protótipo de beleza, em duas semanas. Ele sorri, faz gestos de aprovação com as mãos. O jovem morto, alvo da curiosidade humana, noticiado nos lares da urbe , durante o sagrado momento das refeições em família, volatiliza-se. Facilmente, o sorriso das espectadoras ressurge, reflexo do produto ofertado. Segundo o repórter, solução do problema da vida real.

No mundo animal, o tempo é contato e vivido como se não houvesse novo dilúculo . Mesmo assim, eles parecem em harmonia e a desarmonia enarmônica, por tratar-se da mesma luta pela sobrevivência instigadora da vida, só produz conflitos quando se busca a perpetuação da espécie, ou a conquista da fêmea no momento da cópula, corolário do primeiro. Depois, eles voltam a ser bichos e vivem em paz, principalmente com a natureza – a própria e a oikos da qual dependem.

Por que precisamos acreditar que aqui não há paz, mas única e tão somente intervalo entre guerras? Lutemos por um amor escrachado, pueril, e vamos nos esborrachar de sorrisos! Cara fechada não abre porta! Sorriso gera sorriso. E para portas fechadas existe solução: aprenda a pular, salte! Entre pela janela!

A casa deles, dos bichos, é lar socialista onde todos podem comer sem excessos. Vaidade apenas há no pavão ao esparramar o rabo em leque, ostentando lindas penas terminais que ofuscam a beleza de quem o vê pelas costas. O bicho homem, ao contrário, é pelas costas que come as vísceras do semelhante!

É pelas costas que maldizemos, mentimos e externamos nossos fracassos, medos e inócuas potencialidades, cravando nas costas dos nossos afins a lança da maldade. Quanta saudade das flechas indígenas, pois delas emergia veneno real, sincero, enxertado de maus desejos, presságios da mote; pior que isso é a convivência com cobras peçonhentas a quem temos por amigo; ‘somos uma ilha’, ilha de medos e de destroços! Adoramos a desconstrução; adoramos o imediatismo. Afinal, construir demora, cansa. O melhor a fazer, portanto, é burilar o sentimento, maculando o pilar da Catedral, alardeando que o concreto armado utilizado foi de péssima qualidade... ‘Ah se esse templo caísse e ficasse ao rés do chão!’ A inglória do outro é o regozijo de muitos – isso é ser gente, ser bicho homem!

Construímos tanto: sonhos, mitos, irrealidades... Quem vive apenas com os pés no chão jamais terá a indelével sensação de andar nas nuvens. Quem caminha sempre pelas mesmas estradas jamais terá o prazer de cortar-se na tentativa de podar os arbustos que cerram as paragens dos inusitados caminhos. Ousar, entretanto, é doloroso e sonhar um sonho pesado demais pode valer a própria vida. Então, deitemo-nos em lençóis doirados e esperemos a morte chegar! Morte que pode advir do mesmo homem que esfaqueia, queima e arrasta o semelhante por mero e bel prazer... Que tal se o corpo estendido ao chão fosse o seu, o que acha? Claro que não, certo?

Outro repórter, o Ziraldo, quis ser complacente e sugeriu que o ouvinte seria o cara que fica na frente das câmeras, sorrindo, enquanto o corpo do outro vai se enrijecendo ao passar dos segundos – o tempo também passa para os cadáveres! E o mesmo tempo cuidará de amolecer as putrefatas carnes de quem está no féretro , horas, dias depois...

Brincamos de deuses. Achamos que somos um e agradecemos a Ele por nos ter feito deuses, sua semelhança. Pior que a dúvida é a certeza em alguns momentos – e se sofismamos , se estivermos apenas falseando a verdade intencional ou ingenuamente? Afinal, muitas vezes a verdade tem que ser a nossa verdade. E se somos quem decide, a soberba nos cega!

Desafiamos a vida. A gravidade... E a roda não nos causa mais espantos – que diferença faz se bolamos ou deambulamos ?

O que esse povo quer – ouvi da D. Chica, esposa do Tadeu, dono do mercadinho aqui do bairro – é crescer a qualquer custo.

Tudo tem um preço, mulher! – respondia Seu Tadeu. Em todas as partes do mundo estamos pagando esse preço. A natureza nos está jogando na cara sermos não apenas pó, mas lama! E, embora lama, voltaremos ao pó do qual viemos, acredite você ou não!

Pior foi o desabafo do grande Quermezé, ancião fundador do bairro das Laranjeiras. Homem ‘arretado’, grandalhão na alturas e nas atitudes, vive falando que precisa, urgentemente, ser chamado de bicho. – Ser humano é complicado demais! – afirmava. – Agora, por favor, não quero que seja nessa ordem, não. Não me chamem de bicho homem. Quero ser, isso sim, é um homem-bicho!

Crato-CE, 14 de março de 2011.

21h32min

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 17/03/2011
Reeditado em 25/08/2011
Código do texto: T2853275
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