É PRECISO AMAR O DIFERENTE

Quem foi que disse? Quem foi que disse que você tem que gostar de mim, tem de me aceitar e falar e saudar quando me vir chegar aos cantos? Olhar para mim e fingir estar vendo uma pedra, uma coisa, um nada e simular um sorriso de canto de boca? Um jogo de sedução maledicente, provocativo, típico de seres repugnantes, detestáveis e iníquos.

Quem teve tal ousadia de dizer a você que nas relações sociais vale somente e tão somente o cumprimento de papéis cordiais para fazer valer a política da boa vizinhança? Que os atos forçados são benévolos e estão contidos nas regras de etiqueta para logo após ser invadido por uma onda de ânsia, azia e mal estar? Tapinha nas costas, apertos de mão, abraços, beijos no rosto? Não gaste seu tato à-toa...

Quem foi que disse que essas ações mal planejadas e pessimamente ensaiadas fariam a menor diferença entre nós e os nós que tenho na garganta seriam desatados por atos tão inóspitos e insignes? Não gaste sua saliva, engula esse veneno e deguste apenas aquilo que não te causará adiante prisão de ventre. Triture bem as informações, salive melhor os seus atos, faça a digestão das situações para expelir com mais suavidades os resíduos...

Não se faça de vítima nem ponha nos olhos uma venda. Deixe a visão solta e não precisa se comover com poucas palavras... Não finja enxergar aquilo que não consegue ver. O pior mal é aquele que você atrai para si. É danoso, prejudicial, maléfico, perturbador. Tira o sono e provoca insônia. O coração sente tudo aquilo que é visto pelos olhos da maldade.

Quem foi que desenvolveu a ideia que somos iguais e por esse motivo tenho de preencher os requisitos estipulados por você e ser do seu jeito, ao seu modo, serviçal de sua vontade, criado do seu desejo e me fazer valer da anulação de mim para agradar a você? Ignóbil a possibilidade de ser assim, de camuflar a mim para ascender a você. Não há decoro para tão vil desordem afetiva. A vida é reflexo e a sombra é espaço privado da luz, escuridão trevas, tudo o que entristece a alma...

Quem disse o que você repete, disse sem saber o que estava dizendo, pequeno ser perdido as margens da avenida lateral da vida. Quem soprou o seu discurso, o soprou pela metade, entrecortado, arraigado de sons faltantes ou então ele entrou em você sonolento, caustico, mordaz.

Quem proferiu a você que sua presença a mim é motivo de pirraça? Dou graça, acho graça ou me contorço em gargalhadas pelo nada, pela situação hilariante estabelecida entre nós...

O seu ódio alimenta o meu ego? Não sei!! Não pense que não sei do abismo que nos separa e não estou nem aí. Cada um é responsável pela dor de si, cada um que tente se resolver a sua maneira, cada um senhor das suas escolhas e do seu tino para resolver problemas de ordem particular. Soa estranho estar soletrando essas palavras, mas é assim que tem que ser.

Está incomodado? Tenha uma reação, reaja... Por que apoquentar-se?

Quando me vir vindo pela mesma calçada, mude. Saia da reta, vá para o outro lado da rua e seja feliz. Feliz, isso mesmo. Ponha óculos escuros, passe a mão no cabelo, vire o rosto para o lado oposto, se imponha, seja oposição. Apresse o passo ou ande lentamente, a escolha é sua, só sua, já disse e não pense que seja conselho, não, nada disso, é solução. Conselho a gente dá a pessoas íntimas do nosso afeto e de nossa gratidão. Aos distantes soa como agressão e isso eu não quero nem posso, entende?

Se vem vindo na chuva de guarda-chuva e me encontrar desprotegido, incline o rosto para baixo, contemple a lama e a correnteza da água no chão; aja como se nada tivesse acontecendo ou engrosse o pescoço e tenha atitude, dobre a esquina, pare no orelhão mais próximo e não diga nada, nada, deixe que o gesto comunique o seu desejo. Nesses casos a ingratidão se encarrega de ser a Hermes e alfinetar mensagens de baixo escalão.

O som da minha voz tira seu sossego, sossegue, não seja obrigado a estar no mesmo espaço que estou. Não deixarei de falar por isso. O problema é seu, tente resolvê-lo. Cante uma canção, use fone, se distraia, ou saia ou caia em contradição e indague, pergunte, questione, enfrente, provoque, busque estados de superação de si, é um exercício para se mantiver vivo. É a minha existência que te irrita? Sinto muito então. Você está precisando comprar um espelho, é, um espelho para poder se enxergar...

Infelizmente não posso agir assim do mesmo jeito que você deveria agir, não posso mesmo. Não é de mim ser assim, do modo como você me desenha no seu imaginário, na sua obsessão de produzir em mim os seus temores, seus desafetos, suas desilusões. Não posso me render a essa identidade que não é a minha e participar de uma incógnita criada pelo seu não-ser. É querer demais, é egoísta demais de minha parte me dar por vencido pelo seu capricho. O que posso é oferecer outra face...

Posso até ser capaz de alguns gestos, às vezes não por querer, mas por respeito a você... Não falo, não responde, me calo. Não vejo, não me olha, ignoro. Não escuto, não me escuta mas curto perceber a existência de um ser humano, que se diz humano, que se faz humano e estar na vida e não nego voz.

A sua presença não me incomoda nenhum pouco, sabia? Porque a vida me ensinou a conviver com os diferentes, a respeitar as inquietações e também a provocar, isso mesmo, provocar possibilidades de mudanças e novos olhares para aquilo que aflige o ser.

Não se acovarde porque não faço isso comigo. Eu me enfrento e enfrento esses desagravos, essa tormenta que provoca na boca gosto amargo.

Somos humanos e é essa condição que nos faz vivenciarmos essas situações. Só os humanos são chamados a resolver conflitos, só os humanos pela condição racional são chamados a agir na razão, com a razão e somente pela razão.

O que posso dizer é que lamento muito toda essa situação. Lamento todos esses sentimentos presos dentro de você. Essa falta de afeto e gratidão que possibilitaria a você enxergar o mundo e o semelhante de outra forma.

O que posso dizer é que dentro de mim sobra espaço e estou sempre pronto a acolher aqueles que decidem por uma vivência fraterna, humana e solidária...

Exercite. Chame a si para uma conversa. Seja franco, solidário e afetuoso. Eleve sua mão ao rosto e deixe que o seu tato tenha contato consigo. Sinta-se e depois procure se ouvir. Sinta-se e depois procure degustar esse gosto todo especial de estar se sentindo. Sinta-se e escute todos os sentidos integralmente, integrando a mente ao universo que vai além de si, que extravasa as fronteiras e as amarras que te seguram estático no mesmo lugar. Sai da inercia, experimente andar sem coordenar tantos os seus passos...

Talvez com a compreensão de si, você possa se perceber atento para receber o outro que não tem precisão de ser igual a você. Ame o diferente e construa um mundo mais justo.

Quem foi que disse? Quem disse?

Deixe que digam!!!